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quarta-feira, 28 de maio de 2014

VAIDADE



Sonho que sou a Poetisa eleita, 
Aquela que diz tudo e tudo sabe, 
Que tem a inspiração pura e perfeita, 
Que reúne num verso a imensidade! 
 
Sonho que um verso meu tem claridade 
Para encher todo o mundo! E que deleita 
Mesmo aqueles que morrem de saudade! 
Mesmo os de alma profunda e insatisfeita! 
 
Sonho que sou Alguém cá neste mundo... 
Aquela de saber vasto e profundo, 
Aos pés de quem a Terra anda curvada! 
 
E quando mais no céu eu vou sonhando, 
E quando mais no alto ando voando, 
Acordo do meu sonho... E não sou nada! ... 
 
 
Florbela Espanca
In ‘Livro de Mágoas’
 


ESTE LIVRO...


 
Este livro é de mágoas. Desgraçados 
Que no mundo passais, chorai ao lê-lo! 
Somente a vossa dor de Torturados 
Pode, talvez, senti-lo... e compreendê-lo. 
 
Este livro é para vós. Abençoados 
Os que o sentirem, sem ser bom nem belo! 
Bíblia de tristes... Ó Desventurados, 
Que a vossa imensa dor se acalme ao vê-lo! 
 
Livro de Mágoas... Dores... Ansiedades! 
Livro de Sombras... Névoas e Saudades! 
Vai pelo mundo... (Trouxe-o no meu seio...) 
 
Irmãos na Dor, os olhos rasos de água, 
Chorai comigo a minha imensa mágoa, 
Lendo o meu livro só de mágoas cheio! ... 
 
 
Florbela Espanca
In ‘Livro de Mágoas’
 

TORTURA


 
Tirar dentro do peito a emoção, 
A lúcida verdade, o sentimento! 
- E ser, depois de vir do coração, 
Um punhado de cinza esparso ao vento!... 
 
Sonhar um verso d´alto pensamento, 
E puro como um ritmo d´oração! 
- E ser, depois de vir do coração, 
O pó, o nada, o sonho dum momento!... 
 
São assim ocos, rudes, os meus versos: 
Rimas perdidas, vendavais dispersos, 
Com que eu iludo os outros, com que minto! 
 
Quem me dera encontrar o verso puro, 
O verso altivo e forte, estranho e duro, 
Que dissesse, a chorar, isto que sinto!
 
 
Florbela Espanca 
in ‘Mensageira das Violetas’




EU...


 
Eu sou a que no mundo anda perdida,
Eu sou a que na vida não tem norte,
Sou a irmã do Sonho, e desta sorte
Sou a crucificada ... a dolorida ... 
 
Sombra de névoa tênue e esvaecida, 
E que o destino amargo, triste e forte, 
Impele brutalmente para a morte!
Alma de luto sempre incompreendida!... 
 
Sou aquela que passa e ninguém vê... 
Sou a que chamam triste sem o ser... 
Sou a que chora sem saber por quê... 
 
Sou talvez a visão que alguém sonhou.
Alguém que veio ao mundo pra me ver, 
E que nunca na vida me encontrou! 
 
 
Florbela Espanca 
in ‘Mensageira das Violetas’

TRAZES-ME EM TUAS MÃOS DE VITORIOSO


 
Trazes-me em tuas mãos de vitorioso
Todos os bens que a vida me negou,
E todo um roseiral, a abrir, glorioso
Que a solitária estrada perfumou.
 
Neste meio-dia límpido, radioso,
Sinto o teu coração que Deus talhou
Num pedaço de bronze luminoso,
Como um berço onde a vida me pousou.
 
O silêncio, ao redor, é uma asa quieta...
E a tua boca que sorri e anseia,
Lembra um cálix de tulipa entreaberta...
 
Cheira a ervas amargas, cheira a sândalo... 
E o meu corpo ondulante de sereia
Dorme em teus braços másculos de vândalo...
 
 
Florbela Espanca 
in ‘Mensageira das Violetas’


A TUA VOZ DE PRIMAVERA


 
Manto de seda azul, o céu reflete
Quanta alegria na minha alma vai!
Tenho os meus lábios úmidos: tomai
A flor e o mel que a vida nos promete!
 
Sinfonia de luz meu corpo não repete
O ritmo e a cor dum mesmo desejo... olhai!
Iguala o sol que sempre às ondas cai,
Sem que a visão dos poentes se complete!
 
Meus pequeninos seios cor-de-rosa,
Se os roça ou prende a tua mão nervosa,
Têm a firmeza elástica dos gamos... 
 
Para os teus beijos, sensual, flori!
E amendoeira em flor, só ofereço os ramos,
Só me exalto e sou linda para ti!
 
 
Florbela Espanca 
in ‘Mensageira das Violetas’
 

NAVIOS-FANTASMAS


 
O arabesco fantástico do fumo 
Do meu cigarro traça o que disseste, 
A azul, no ar; e o que me escreveste, 
E tudo o que sonhaste e eu presumo.
 
Para a minha alma estática e sem rumo,
A lembrança de tudo o que me deste
Passa como o navio que perdeste, 
No arabesco fantástico do fumo...
 
Lá vão! Lá vão! Sem velas e sem mastros, 
Têm o brilho rutilante de astros,
Navios-fantasmas, perdem-se a distância!
 
Vão-me buscar, sem mastros e sem velas, 
Noiva-menina, as doidas caravelas, 
Ao ignoto País da minha infância...
 
Florbela Espanca
In ‘Reliquiae’
 

ROSEIRA BRAVA


 
Há nos teus olhos de oiro um tal fulgor 
E no teu riso tanta claridade, 
Que o lembrar-me de ti é ter saudade
Duma roseira brava toda em flor.
 
Tuas mãos foram feitas para a dor,
Para os gestos de doçura e piedade;
E os teus beijos de sonho e de ansiedade 
São como a alma a arder do próprio amor! 
 
Nasci envolta em trajes de mendiga; 
E, ao dares-me o teu amor de maravilha,
Deste-me o manto de oiro de rainha!
 
Tua irmã... teu amor... e tua amiga... 
E também - toda em flor - a tua filha, 
Minha roseira brava que é só minha!...
 
Florbela Espanca
In ‘Reliquiae’




POBREZINHA


 
Nas nossas duas sinas tão contrárias 
Um pelo outro somos ignorados:
Sou filha de regiões imaginárias, 
Tu pisas mundos firmes já pisados.
 
Trago no olhar visões extraordinárias 
De coisas que abracei de olhos fechados... 
Em mim não trago nada, como os párias... 
Só tenho os astros, como os deserdados...
 
E das tuas riquezas e de ti 
Nada me deste e eu nada recebi, 
Nem o beijo que passa e que consola.
 
E o meu corpo, minh'alma e coração 
Tudo em risos poisei na tua mão!... 
...Ah, como é bom um pobre dar esmola!...
 
Florbela Espanca
In ‘Reliquiae’

Quem Sabe?!…


 
Eu sigo-te e tu foges. É este o meu destino:
Beber o fel amargo em luminosa taça,
Chorar amargamente um beijo teu, divino,
E rir olhando o vulto altivo da desgraça!
 
Tu foges-me, e eu sigo o teu olhar bendito;
Por mais que fujas sempre, um sonho há de alcançar-te
Se um sonho pode andar por todo o infinito,
De que serve fugir se um sonho há de encontrar-te?!
 
Demais, nem eu talvez, perceba se o amor
É este perseguir de raiva, de furor,
Com que eu te sigo assim como os rafeiros leais.
 
Ou se é então a fuga eterna, misteriosa,
Com que me foges sempre, ó noite tenebrosa!
Por me fugires, sim, talvez me queiras mais!
 
Florbela Espanca
In ‘Charneca Em Flor’ 1931

Crucificada


 
Amiga… noiva… irmã… o que quiseres!
Por ti, todos os céus terão estrelas,
Por teu amor, mendiga, hei de merecê-las,
Ao beijar a esmola que me deres.
 
Podes amar até outras mulheres!
- Hei de compor, sonhar palavras belas,
Lindos versos de dor só para elas,
Para em lânguidas noites lhes dizeres!
 
Crucificada em mim, sobre os meus braços,
Hei de pousar a boca nos teus passos
Pra não serem pisados por ninguém.
 
E depois… Ah, depois de dores tamanhas,
Nascerás outra vez de outras entranhas,
Nascerás outra vez de uma outra mãe!
 
Florbela Espanca
In ‘Charneca Em Flor’ 1931
 

CHARNECA EM FLOR


 
Enche o meu peito, num encanto mago,
O frêmito das coisas dolorosas...
Sob as urzes queimadas nascem rosas...
Nos meus olhos as lágrimas apago...
 
Anseio! Asas abertas! O que trago
Em mim? Eu oiço bocas silenciosas
Murmurar-me as palavras misteriosas
Que perturbam meu ser como um afago!
 
E nesta febre ansiosa que me invade, 
Dispo a minha mortalha, o meu burel,
E, já não sou, Amor, Sóror Saudade...
 
Olhos a arder em êxtases de amor, 
Boca a saber a sol, a fruto, a mel:
Sou a charneca rude a abrir em flor!
 
Florbela Espanca
In ‘Charneca Em Flor’ 1931
 

Dedicatória


  
É só teu o meu livro; guarda-o bem;
Nele floresce o nosso casto amor
Nascido nesse dia em que o destino
Uniu o teu olhar à minha dor!
 
Florbela Espanca
In “Trocando olhares” (1916)
 

Meu amor



De ti somente um nome sei, amor.
É pouco, é muito pouco e é bastante
Para que esta paixão doida e constante
Dia após dia cresça com vigor!
 
Como de um sonho vago e sem fervor
Nasce uma paixão assim tão inquietante!
Meu doido coração triste e amante
Como tu buscas o ideal na dor!
 
Isto era só quimera, fantasia,
Mágoa de sonho que se esvai num dia,
Perfume leve dum rosal do céu...
 
Paixão ardente, louca isto é agora,
Vulcão que vai crescendo hora por hora...
O meu amor, que imenso amor o meu!
 
Florbela Espanca
In “Trocando olhares” (1916)



Vozes Do Mar




Quando o sol vai caindo sobre as águas
Num nervoso delíquio d"oiro intenso,
Donde vem essa voz cheia de mágoas
Com que falas à terra, ó mar imenso?…

Tu falas de festins, e cavalgadas
De cavaleiros errantes ao luar?
Falas de caravelas encantadas
Que dormem em teu seio a soluçar?

Tens cantos d"epopeias?Tens anseios
D"amarguras? Tu tens também receios,
Ó mar cheio de esperança e majestade?!

Donde vem essa voz,ó mar amigo?…
… Talvez a voz do Portugal antigo,
Chamando por Camões numa saudade!

Florbela Espanca
In “Trocando olhares” (1916)