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sábado, 5 de outubro de 2013

Castelã da Tristeza




Altiva e couraçada de desdém,
Vivo sozinha em meu castelo: a Dor!
Passa por ele a luz de todo o amor ...
E nunca em meu castelo entrou alguém!

Castelã da Tristeza, vês? ... A quem? ...
– E o meu olhar é interrogador –
Perscruto, ao longe, as sombras do sol-pôr ...
Chora o silêncio ... nada ... ninguém vem ...

Castelã da Tristeza, porque choras
Lendo, toda de branco, um livro de horas,
À sombra rendilhada dos vitrais? ...

À noite, debruçada, pelas ameias,
Porque rezas baixinho? ... Porque anseias? ...
Que sonho afagam tuas mãos reais? ...


Florbela Espanca
in "Livro de Mágoas"

PARA QUÊ?



Ao velho amigo João 

Para que ser o musgo do rochedo 
Ou urze atormentada da montanha? 
Se a arranca a ansiedade e o medo 
E este enleio e esta angústia estranha

E todo este feitiço e este enredo 
Do nosso próprio peito? E é tamanha 
E tão profunda a gente que o segredo
Da vida como um grande mar nos banha?

Pra que ser asa quando a gente voa 
De que serve ser cântico se entoa 
Toda a canção de amor do Universo?

Para que ser altura e ansiedade, 
Se se pode gritar uma Verdade 
Ao mundo vão nas sílabas dum verso?

Florbela Espanca
In ‘Reliquiae’


EM VÃO


 
Passo triste na vida e triste sou 
Um pobre a quem jamais quiseram bem!
Um caminhante exausto que passou, 
Que não diz onde vai nem donde vem.
 
Ah! Sem piedade, a rir, tanto desdém 
A flor da minha boca desdenhou! 
Solitário convento onde ninguém 
A silenciosa cela procurou!
 
E eu quero bem a tudo, a toda a gente!... 
Ando a amar assim, perdidamente,
A acalentar o mundo nos meus braços!
 
E tem passado, em vão, a mocidade 
Sem que no meu caminho uma saudade 
Abra em flores a sombra dos meus passos!

 
Florbela Espanca
In ‘Reliquiae’

O MEU IMPOSSÍVEL



Minh’alma ardente é uma fogueira acesa,
É um brasido enorme a crepitar! 
Ânsia de procurar sem encontrar 
A chama onde queimar uma incerteza!

Tudo é vago e incompleto! E o que mais pesa 
É nada ser perfeito! É deslumbrar 
A noite tormentosa até cegar
E tudo ser em vão! Deus, que tristeza!...

Aos meus irmãos na dor já disse tudo 
E não me compreenderam!... Vão e mudo 
Foi tudo o que entendi e o que pressinto...

Mas se eu pudesse, a mágoa que em mim chora. 
Contar, não a chorava como agora, 
Irmãos, não a sentia como a sinto!...

Florbela Espanca
In ‘Reliquiae’


ROSEIRA BRAVA


 
Há nos teus olhos de oiro um tal fulgor 
E no teu riso tanta claridade, 
Que o lembrar-me de ti é ter saudade
Duma roseira brava toda em flor.
 
Tuas mãos foram feitas para a dor,
Para os gestos de doçura e piedade;
E os teus beijos de sonho e de ansiedade 
São como a alma a arder do próprio amor! 
 
Nasci envolta em trajes de mendiga; 
E, ao dares-me o teu amor de maravilha,
Deste-me o manto de oiro de rainha!
 
Tua irmã... teu amor... e tua amiga... 
E também - toda em flor - a tua filha, 
Minha roseira brava que é só minha!...
 
Florbela Espanca
In ‘Reliquiae’


terça-feira, 1 de outubro de 2013

Alvorecer



A noite empalidece. Alvorecer…
Ouve-se mais o gargalhar da fonte…
Sobre a cidade muda, o horizonte
É uma orquídea estranha a florescer.
 
Há andorinhas prontas a dizer
A missa d’alva, mal o sol desponte.
Gritos de galos soam monte em monte
Numa intensa alegria de viver.
 
Passos ao longe… um vulto que se esvai…
Em cada sombra Colombina trai…
Anda o silêncio em volta a q’rer falar…
 
E o luar que desmaia, macerado,
Lembra, pálido, tonto, esfarrapado,
Um Pierrot, todo branco, a soluçar…

 
Florbela Espanca
In ‘Charneca Em Flor’ 1931


OUTONAL


  
Caem as folhas mortas sobre o lago;
Na penumbra outonal, não sei quem tece
As rendas do silêncio... Olha, anoitece!
- Brumas longínquas do País do Vago...
 
Veludos a ondear... Mistério mago...
Encantamento... A hora que não esquece,
A luz que a pouco e pouco desfalece,
Que lança em mim a bênção dum afago...
 
Outono dos crepúsculos doirados, 
De púrpuras, damascos e brocados!
- Vestes a terra inteira de esplendor!
 
Outono das tardinhas silenciosas, 
Das magníficas noites voluptuosas 
Em que eu soluço a delirar de amor...
 
 
Florbela Espanca
In ‘Charneca Em Flor’ 1931

segunda-feira, 30 de setembro de 2013

RELIQUIAE



Título dado a este livro por Guido Battelli,
 que ficou depositário destes originais após
 a morte da poetisa. Foi publicado, como apêndice,
 nas 2ª e 3ª edições de Charneca em flor.

POEMAS DO LIVRO "MENSAGEIRA DAS VIOLETAS"



A TUA VOZ DE PRIMAVERA

Manto de seda azul, o céu reflete
Quanta alegria na minha alma vai!
Tenho os meus lábios úmidos: tomai
A flor e o mel que a vida nos promete!

Sinfonia de luz meu corpo não repete
O ritmo e a cor dum mesmo desejo... olhai!
Iguala o sol que sempre às ondas cai,
Sem que a visão dos poentes se complete!

Meus pequeninos seios cor-de-rosa,
Se os roça ou prende a tua mão nervosa,
Têm a firmeza elástica dos gamos... 

Para os teus beijos, sensual, flori!
E amendoeira em flor, só ofereço os ramos,
Só me exalto e sou linda para ti!


Florbela Espanca 
in ‘Mensageira das Violetas’


TRAZES-ME EM TUAS MÃOS DE VITORIOSO

Trazes-me em tuas mãos de vitorioso
Todos os bens que a vida me negou,
E todo um roseiral, a abrir, glorioso
Que a solitária estrada perfumou.

Neste meio-dia límpido, radioso,
Sinto o teu coração que Deus talhou
Num pedaço de bronze luminoso,
Como um berço onde a vida me pousou.

O silêncio, ao redor, é uma asa quieta...
E a tua boca que sorri e anseia,
Lembra um cálix de tulipa entreaberta...

Cheira a ervas amargas, cheira a sândalo... 
E o meu corpo ondulante de sereia
Dorme em teus braços másculos de vândalo...


Florbela Espanca 
in ‘Mensageira das Violetas’


EU...

Eu sou a que no mundo anda perdida,
Eu sou a que na vida não tem norte,
Sou a irmã do Sonho, e desta sorte
Sou a crucificada ... a dolorida ... 

Sombra de névoa tênue e esvaecida, 
E que o destino amargo, triste e forte, 
Impele brutalmente para a morte!
Alma de luto sempre incompreendida!... 

Sou aquela que passa e ninguém vê... 
Sou a que chamam triste sem o ser... 
Sou a que chora sem saber por quê... 

Sou talvez a visão que alguém sonhou.
Alguém que veio ao mundo pra me ver, 
E que nunca na vida me encontrou! 


Florbela Espanca 
in ‘Mensageira das Violetas’


TORTURA

Tirar dentro do peito a emoção, 
A lúcida verdade, o sentimento! 
- E ser, depois de vir do coração, 
Um punhado de cinza esparso ao vento!... 

Sonhar um verso d´alto pensamento, 
E puro como um ritmo d´oração! 
- E ser, depois de vir do coração, 
O pó, o nada, o sonho dum momento!... 

São assim ocos, rudes, os meus versos: 
Rimas perdidas, vendavais dispersos, 
Com que eu iludo os outros, com que minto! 

Quem me dera encontrar o verso puro, 
O verso altivo e forte, estranho e duro, 
Que dissesse, a chorar, isto que sinto!


Florbela Espanca 
in ‘Mensageira das Violetas’


A MINHA DOR
A você

A minha dor é um convento ideal 
Cheio de claustros, sombras, arcarias, 
Aonde a pedra em convulsões sombrias 
Tem linhas dum requinte escultural. 

Os sinos têm dobres d´agonias 
Ao gemer, comovidos, o seu mal... 
E todos têm sons de funeral 
Ao bater horas, no correr dos dias... 

A minha dor é um convento. Há lírios 
Dum roxo macerado de martírios, 
Tão belos como nunca os viu alguém! 

Nesse triste convento aonde eu moro, 
Noites e dias rezo e grito e choro! 
E ninguém ouve... ninguém vê... ninguém...


Florbela Espanca 
in ‘Mensageira das Violetas’


A FLOR DO SONHO

A flor do sonho, alvíssima, divina
Miraculosamente abriu em mim,
Como se uma magnólia de cetim
Fosse florir num muro todo em ruína.

Pende em meu seio a haste branda e fina.
E não posso entender como é que, enfim,
Essa tão rara flor abriu assim!...
Milagre... fantasia... ou talvez, sina....

Ó flor, que em mim nasceste sem abrolhos,
Que tem que sejam tristes os meus olhos
Se eles são tristes pelo amor de ti?!...

Desde que em mim nasceste em noite calma,
Voou ao longe a asa da minh´alma
E nunca, nunca mais eu me entendi...


Florbela Espanca 
in ‘Mensageira das Violetas’


NOITE DE SAUDADE

A noite vem pousando devagar
Sobre a terra que inunda de amargura...
E nem sequer a bênção do luar
A quis tornar divinamente pura...

Ninguém vem atrás dela a acompanhar
A sua dor que é cheia de tortura...
E eu ouço a noite a soluçar!
E eu ouço soluçar a noite escura!

Por que é assim tão ´scura, assim tão triste?!
É que, talvez, ó noite, em ti existe
Uma saudade igual à que eu contenho!

Saudade que eu nem sei donde me vem...
Talvez de ti, ó noite!... Ou de ninguém!...
Que eu nunca sei quem sou, nem o que tenho!


Florbela Espanca 
in ‘Mensageira das Violetas’



AMIGA

Deixa-me ser a tua amiga, amor;
A tua amiga só, já que não queres
Que pelo teu amor seja a melhor
A mais triste de todas as mulheres.

Que só, de ti, me venha mágoa e dor
O que me importa, a mim?! O que quiseres
É sempre um sonho bom! Seja o que for
Bendito sejas tu por mo dizeres!

Beija-me as mãos, amor, devagarinho...
Como se os dois nascêssemos irmãos,
Aves cantando, ao sol, no mesmo ninho...

Beija-mas bem!... Que fantasia louca
Guardar assim, fechados, nestas mãos,
Os beijos que sonhei pra minha boca!...


Florbela Espanca 
in ‘Mensageira das Violetas’



PARA QUÊ?!

Tudo é vaidade neste mundo vão...
Tudo é tristeza; tudo é pó, é nada!
E mal desponta em nós a madrugada,
Vem logo a noite encher o coração!

Até o amor nos mente, essa canção
Que nosso peito ri `a gargalhada,
Flor que é nascida e logo desfolhada,
Pétalas que se pisam pelo chão!...

Beijos d´amor? Pra quê?!... Tristes vaidades! 
Sonhos que logo são realidades,
Que nos deixam a alma como morta!

Só acredita neles quem é louca!
Beijos d´amor que vão de boca em boca,
Como pobres que vão de porta em porta!...


Florbela Espanca
‘A Mensageira das Violetas’



VELHINHA

Se os que me viram já cheia de graça 
Olharem bem de frente para mim, 
Talvez, cheios de dor, digam assim: 
"Já ela é velha! Como o tempo passa!..."

Não sei rir e cantar por mais que faça! 
Ó minhas mãos talhadas em marfim, 
Deixem esse fio de ouro que esvoaça! 
Deixem correr a vida até ao fim! 

Tenho vinte e três anos! Sou velhinha! 
Tenho cabelos brancos e sou crente... 
Já murmuro orações... falo sozinha... 

E o bando cor-de-rosa dos carinhos 
Que tu me fazes, olho-os indulgente, 
Como se fosse um bando de netinhos...


Florbela Espanca
‘A Mensageira das Violetas’


IMPOSSÍVEL

Disseram-me hoje, assim, ao ver-me triste: 
"Parece Sexta-feira da Paixão. 
Sempre a cismar, cismar, d´olhos no chão, 
Sempre a pensar na dor que não existe... 

O que é que tem?! Tão nova e sempre triste! 
Faça por ´star contente! Pois então?!..."
Quando se sofre, o que se diz é vão... 
Meu coração, tudo, calado ouviste... 

Os meus males ninguém mos adivinha... 
A minha dor não fala, anda sozinha... 
Dissesse ela o que sente! Ai quem me dera!... 

Os males d´Anto toda a gente os sabe! 
Os meus...ninguém... A minha dor não cabe 
Nos cem milhões de versos que eu fizera!...


Florbela Espanca 
in ‘Mensageira das Violetas’


QUEM?...

Não sei quem és. Já não te vejo bem...
E ouço-me dizer (ai, tanta vez!...)
Sonho que um outro sonho me desfez?
Fantasma de que amor? Sombra de quem?

Névoa? Quimera? Fumo? Donde vem?...
- Não sei se tu, amor, assim me vês!...
Nossos olhos não são nossos, talvez...
Assim, tu não és tu! Não és ninguém!... 

És tudo e não és nada... És a desgraça...
És quem nem sequer vejo; és um que passa...
És sorriso de Deus que não mereço... 

És aquele que vive e que morreu...
És aquele que é quase um outro eu...
És aquele que nem sequer conheço...

Florbela Espanca 
in ‘Mensageira das Violetas’


SEM PALAVRAS

Brancas, suaves mãos de irmã
Que são mais doces que as das rainhas,
Hão de pousar em tuas mãos, as minhas
Numa carícia transcendente e vã.

E a tua boca a divinal manhã 
Que diz as frases com que me acarinhas,
Há de pousar nas dolorosas linhas
Da minha boca purpurina e sã. 

Meus olhos hão de olhar teus olhos tristes;
Só eles te dirão que tu existes
Dentro de mim num riso d’alvorada!

E nunca se amará ninguém melhor;
Tu calando de mim o teu amor,
Sem que eu nunca do meu te diga nada!... 


Florbela Espanca 
in ‘Mensageira das Violetas’



QUE IMPORTA?...

Eu era a desdenhosa, a indiferente. 
Nunca sentira em mim o coração 
Bater em violências de paixão, 
Como bate no peito à outra gente. 

Agora, olhas-me tu altivamente, 
Sem sombra de desejo ou de emoção, 
Enquanto as asas louras da ilusão 
Abrem dentro de mim ao sol nascente. 

Minh'alma, a pedra, transformou-se em fonte; 
Como nascida em carinhoso monte, 
Toda ela é riso, e é frescura e graça! 

Nela refresca a boca um só instante... 
Que importa?... Se o cansado viandante 
Bebe em todas as fontes... quando passa?... 


Florbela Espanca 
in ‘Mensageira das Violetas’



O MEU ORGULHO

Lembro-me o que fui dantes. Quem me dera
Não lembrar! Em tardes dolorosas
Lembro-me que fui a primavera
Que em muros velhos faz nascer as rosas!

As minhas mãos outrora carinhosas
Pairavam como pombas... Quem soubera
Por que tudo passou e foi quimera,
E por que os muros velhos não dão rosas!

São sempre os que eu recordo que me esquecem...
Mas digo para mim: "Não me merecem..."
E já não fico tão abandonada!

Sinto que valho mais, mais pobrezinha:
Que também é orgulho ser sozinha
E também é nobreza não ter nada!


Florbela Espanca 
in ‘Mensageira das Violetas’



INCONSTÂNCIA

Procurei o amor, que me mentiu. 
Pedi à vida mais do que ela dava; 
Eterna sonhadora edificava 
Meu castelo de luz que me caiu! 

Tanto clarão nas trevas refulgiu, 
E tanto beijo a boca me queimava! 
E era o sol que os longes deslumbrava 
Igual a tanto sol que me fugiu! 

Passei a vida a amar e a esquecer... 
Atrás do sol dum dia outro a aquecer 
As brumas dos atalhos por onde ando... 

E este amor que assim me vai fugindo 
É igual a outro amor que vai surgindo, 
Que há-de partir também... nem eu sei quando... 


Florbela Espanca
in ‘A Mensageira das Violetas’





O NOSSO MUNDO

Eu bebo a vida, a vida, a longos tragos 
Como um divino vinho de Falerno! 
Pousando em ti o meu olhar eterno 
Como pousam as folhas sobre os lagos... 

Os meus sonhos agora são mais vagos... 
O teu olhar em mim, hoje, é mais terno... 
E a vida já não é o rubro inferno 
Todo fantasmas tristes e pressagos! 

A vida, meu amor, quero vivê-la! 
Na mesma taça erguida em tuas mãos, 
Bocas unidas, hemos de bebê-la! 

Que importa o mundo e as ilusões defuntas?... 
Que importa o mundo e seus orgulhos vãos?... 
O mundo, amor! ... As nossas bocas juntas!...


Florbela Espanca
in ‘A Mensageira das Violetas’


ANOITECER

A luz desmaia num fulgor d’aurora, 
Diz-nos adeus religiosamente... 
E eu que não creio em nada, sou mais crente 
Do que em menina, um dia, o fui... outrora... 

Não sei o que em mim ri, o que em mim chora, 
Tenho bênçãos de amor pra toda a gente! 
E a minha alma, sombria e penitente 
Soluça no infinito desta hora!

Horas tristes que vão ao meu rosário... 
Ó minha cruz de tão pesado lenho! 
Ó meu áspero e intérmino Calvário! 

E a esta hora tudo em mim revive: 
Saudades de saudades que não tenho... 
Sonhos que são os sonhos dos que eu tive...


Florbela Espanca
‘A Mensageira das Violetas’


CREPÚSCULO

Teus olhos, borboletas de ouro, ardentes
Borboletas de sol, de asas magoadas,
Pousam nos meus, suaves e cansadas
Como em dois lírios roxos e dolentes...

E os lírios fecham... Meu amor não sentes?
Minha boca tem rosas desmaiadas,
E a minhas pobres mãos são maceradas
Como vagas saudades de doentes...

O silêncio abre as mãos... entorna rosas...
Andam no ar carícias vaporosas
Como pálidas sedas, arrastando...

E a tua boca rubra ao pé da minha
É na suavidade da tardinha. 
Um coração ardente palpitando...


Florbela Espanca
in ‘A Mensageira das Violetas’


EXALTAÇÃO

Viver!... Beber o vento e o sol!... Erguer 
Ao céu os corações a palpitar! 
Deus fez os nossos braços pra prender, 
E a boca fez-se sangue pra beijar! 

A chama, sempre rubra, ao alto a arder!... 
Asas sempre perdidas a pairar, 
Mais alto para as estrelas desprender!... 
A glória!... A fama!... O orgulho de criar!... 

Da vida tenho o mel e tenho os travos 
No lago dos meus olhos de violetas, 
Nos meus beijos estáticos, pagãos!... 

Trago na boca o coração dos cravos! 
Boêmios, vagabundos, e poetas: 
- Como eu sou vossa irmã, ó meus irmãos!... 


Florbela Espanca,in
‘A Mensageira das Violetas’



RÚSTICA

Ser a moça mais linda do povoado, 
Pisar, sempre contente, o mesmo trilho, 
Ver descer sobre o ninho aconchegado 
A bênção do Senhor em cada filho. 

Um vestido de chita bem lavado, 
Cheirando a alfazema e a tomilho... 
Com o luar matar a sede ao gado, 
Dar às pombas o sol num grão de milho... 

Ser pura como a água da cisterna, 
Ter confiança numa vida eterna 
Quando descer à "terra da verdade"... 

Meu Deus, dai-me esta calma, esta pobreza! 
Dou por elas meu trono de princesa, 
E todos os meus reinos de ansiedade. 


Florbela Espanca
in ‘A Mensageira das Violetas’


CONTO DE FADAS

Eu trago-te nas mãos o esquecimento 
Das horas más que tens vivido, amor! 
E para as tuas chagas o ungüento 
Com que sarei a minha própria dor. 

Os meus gestos são ondas de Sorrento... 
Trago no nome as letras duma flor... 
Foi dos meus olhos garços que um pintor 
Tirou a luz para pintar o vento... 

Dou-te o que tenho: o astro que dormita, 
O manto dos crepúsculos da tarde, 
O sol que é d´ouro, a onda que palpita. 

Dou-te comigo o mundo que Deus fez! 
- Eu sou aquela de quem tens saudade, 
A princesa de conto: "Era uma vez..."


Florbela Espanca
‘A Mensageira das Violetas’



EU

Até agora eu não me conhecia, 
Julgava que era eu e eu não era 
Aquela que em meus versos descrevera 
Tão clara como a fonte e como o dia. 

Mas que eu não era eu não o sabia 
E, mesmo que o soubesse, o não dissera... 
Olhos fitos em rútila quimera
Andava atrás de mim... E não me via! 

Andava a procurar-me - pobre louca! - 
E achei o meu olhar no teu olhar, 
E a minha boca sobre a tua boca! 

E esta ânsia de viver, que nada acalma, 
É a chama da tua alma a esbrasear 
As apagadas cinzas da minha alma! 


Florbela Espanca
‘A Mensageira das Violetas’



PASSEIO NO CAMPO

Meu amor! Meu amante! Meu amigo! 
Colhe a hora que passa, hora divina, 
Bebe-a dentro de mim, bebe-a comigo! 
Sinto-me alegre e forte! Sou menina! 

Eu tenho, amor, a cinta esbelta e fina... 
Pele dourada de alabastro antigo... 
Frágeis mãos de madona florentina... 
- Vamos correr e rir por entre o trigo! 

Há rendas de gramíneas pelos montes... 
Papoulas rubras nos trigais maduros... 
Água azulada a cintilar nas fontes... 

E à volta, amor... tornemos, nas alfombras 
Dos caminhos selvagens e escuros, 
Num astro só as nossas duas sombras... 


Florbela Espanca
‘A Mensageira das Violetas’


MENDIGA

Na vida nada tenho e nada sou; 
Eu ando a mendigar pelas estradas... 
No silêncio das noites estreladas
Caminho, sem saber para onde vou!

Tinha o manto do sol... quem mo roubou?! 
Quem pisou minhas rosas desfolhadas?! 
Quem foi que sobre as ondas revoltadas 
A minha taça de ouro espedaçou? 

Agora vou andando e mendigando, 
Sem que um olhar dos mundos infinitos 
Veja passar o verme, rastejando... 

Ah, quem me dera ser como os chacais 
Uivando os brados, rouquejando os gritos 
Na solidão dos ermos matagais!... 


Florbela Espanca
‘A Mensageira das Violetas’



SUPREMO ENLEIO

Quanta mulher no teu passado, quanta! 
Tanta sombra em redor! Mas que me importa? 
Se delas veio o sonho que conforta, 
A sua vinda foi três vezes santa! 

Erva do chão que a mão de Deus levanta, 
Folhas murchas de rojo à tua porta... 
Quando eu for uma pobre coisa morta, 
Quanta mulher ainda! Quanta! Quanta! 

Mas eu sou a manhã: apago estrelas! 
Hás de ver-me, beijar-me em todas elas, 
Mesmo na boca da que for mais linda! 

E quando a derradeira, enfim, vier, 
Nesse corpo vibrante de mulher 
Será o meu que hás de encontrar ainda...


Florbela Espanca
‘A Mensageira das Violetas’


TOLEDO


Diluído numa taça de ouro a arder 
Toledo é um rubi. E hoje é só nosso! 
O sol a rir...Viv´alma...Não esboço 
Um gesto que me não sinta esvaecer... 

As tuas mãos tateiam-me a tremer... 
Meu corpo de âmbar, harmonioso e moço, 
É como um jasmineiro em alvoroço 
Ébrio de sol, de aroma, de prazer! 

Cerro um pouco o olhar, onde subsiste 
Um romântico apelo vago e mudo 
- Um grande amor é sempre grave e triste. 

Flameja ao longe o esmalte azul do Tejo... 
Uma torre ergue ao céu um grito agudo... 
Tua boca desfolha-me num beijo...


Florbela Espanca
‘A Mensageira das Violetas’



SER POETA

Ser poeta é ser mais alto, é ser maior 
Do que os homens! Morder como quem beija! 
É ser mendigo e dar como quem seja 
Rei do Reino de Aquém e de Além Dor! 

É ter de mil desejos o esplendor 
E não saber sequer que se deseja! 
É ter cá dentro um astro que flameja, 
É ter garras e asas de condor! 

É ter fome, é ter sede de infinito! 
Por elmo, as manhãs de ouro e de cetim... 
É condensar o mundo num só grito! 

E é amar-te, assim, perdidamente... 
É seres alma e sangue e vida em mim 
E dizê-lo cantando a toda a gente!


Florbela Espanca
‘A Mensageira das Violetas’



ALVORECER

A noite empalidece.Alvorecer... 
Ouve-se mais o gargalhar da fonte... 
Sobre a cidade muda, o horizonte 
É uma orquídea estranha a florescer. 

Há andorinhas prontas a dizer 
A missa d´alva, mal o sol desponte. 
Gritos de galos soam monte em monte 
Numa intensa alegria de viver. 

Passos ao longe...um vulto que se esvai... 
Em cada sombra Colombina trai... 
Anda o silêncio em volta a q´rer falar... 

E o luar que desmaia, macerado, 
Lembra, pálido, tonto, esfarrapado, 
Um Pierrot, todo branco, a soluçar...


Florbela Espanca
‘A Mensageira das Violetas’



AMAR!

Eu quero amar, amar perdidamente! 
Amar só por amar: aqui...além...
Mais este e aquele, o outro e toda a gente....
Amar!Amar! E não amar ninguém!

Recordar? Esquecer? Indiferente!... 
Prender ou desprender? É mal? É bem? 
Quem disser que se pode amar alguém
Durante a vida inteira é porque mente!

Há uma primavera em cada vida:
É preciso cantá-la assim florida, 
Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar.

E se um dia hei de ser pó, cinza e nada
Que seja a minha noite uma alvorada,
Que me saiba perder... pra me encontrar...


Florbela Espanca
‘A Mensageira das Violetas’



NOSTALGIA

Nesse país de lenda, que me encanta, 
Ficaram meus brocados, que despi, 
E as jóias que p´las aias reparti 
Como outras rosas de Rainha Santa! 

Tanta opala que eu tinha! Tanta, tanta! 
Foi por lá que as semeei e que as perdi... 
Mostrem-me esse País onde eu nasci! 
Mostrem-me o reino de que eu sou infanta! 

Ó meu país de sonho e de ansiedade, 
Não sei se esta quimera que me assombra, 
É feita de mentira ou de verdade! 

Quero voltar! Não sei por onde vim... 
Ah! Não ser mais que a sombra duma sombra 
Por entre tanta sombra igual a mim! 


Florbela Espanca
‘A Mensageira das Violetas’



CRUCIFICADA

Amiga... noiva... irmã... o que quiseres! 
Por ti, todos os céus terão estrelas, 
Por teu amor, mendiga, hei de merecê-las, 
Ao beijar a esmola que me deres. 

Podes amar até outras mulheres! 
- Hei de compor, sonhar palavras belas, 
Lindos versos de dor só para elas, 
Para em lânguidas noites lhes dizeres! 

Crucificada em mim, sobre os meus braços, 
Hei de pousar a boca nos teus passos 
Pra não serem pisados por ninguém. 

E depois... Ah, depois de dores tamanhas, 
Nascerás outra vez de outras entranhas, 
Nascerás outra vez de uma outra mãe! 


Florbela Espanca
‘A Mensageira das Violetas’



ESPERA...

Não me digas adeus, ó sombra amiga, 
Abranda mais o ritmo dos teus passos; 
Sente o perfume da paixão antiga, 
Dos nossos bons e cândidos abraços! 

Sou dona de místicos cansaços,
A fantástica e estranha rapariga
Que um dia ficou presa nos teus braços...
Não vás ainda embora, ó sombra amiga!

Teu amor fez de mim um lago triste: 
Quantas ondas a rir que não lhe ouviste, 
Quanta canção de ondinas lá no fundo! 

Espera...espera...ó minha sombra amada... 
Vê que pra além de mim já não há nada 
E nunca mais me encontrarás neste mundo!


Florbela Espanca
‘A Mensageira das Violetas’



INTERROGAÇÃO

Neste tormento inútil, neste empenho 
De tornar em silêncio o que em mim canta, 
Sobem-me roucos brados à garganta 
Num clamor de loucura que contenho. 

Ó alma da charneca sacrossanta, 
Irmã da alma rútila que eu tenho, 
Dize para onde eu vou, donde é que venho 
Nesta dor que me exalta e me alevanta! 

Visões de mundos novos, de infinitos, 
Cadências de soluços e de gritos, 
Fogueira a esbrasear que me consome! 

Dize que mão é esta que me arrasta? 
Nódoa de sangue que palpita e alastra... 
Dize de que é que eu tenho sede e fome?!


Florbela Espanca
‘A Mensageira das Violetas’


VOLÚPIA

No divino impudor da mocidade, 
Nesse êxtase pagão que vence a sorte, 
Num frêmito vibrante de ansiedade, 
Dou-te meu corpo prometido à morte! 

A sombra entre a mentira e a verdade... 
A nuvem que arrastou o vento norte... 
- Meu corpo! Trago nele um vinho forte: 
Meus beijos de volúpia e de maldade! 

Trago dálias vermelhas no regaço... 
São os dedos do sol quando te abraço, 
Cravados no teu peito como lanças! 

E do meu corpo os leves arabescos 
Vão-te envolvendo em círculos dantescos 
Felinamente, em voluptuosas danças...


Florbela Espanca
‘A Mensageira das Violetas’



A VOZ DA TÍLIA

Diz-me a tília a cantar: "Eu sou sincera, 
Eu sou isto que vês: o sonho, a graça, 
Deu ao meu corpo, o vento, quando passa, 
Este ar escultural de bayadera...

E de manhã o sol é uma cratera, 
Uma serpente de ouro que me enlaça... 
Trago nas mãos as mãos da primavera... 
E é para mim que em noites de desgraça

Toca o vento Mozart, triste e solene, 
E à minha alma vibrante, posta a nu, 
Diz a chuva sonetos de Verlaine..." 

E, ao ver-me triste, a tília murmurou: 
"Já fui um dia poeta como tu... 
Ainda hás de ser tília como eu sou..." 


Florbela Espanca
‘A Mensageira das Violetas’



NÃO SER

Quem me dera voltar à inocência 
Das coisas brutas, sãs, inanimadas, 
Despir o vão orgulho, a incoerência: 
- Mantos rotos de estátuas mutiladas! 

Ah! Arrancar às carnes laceradas 
Seu mísero segredo de consciência! 
Ah! Poder ser apenas florescência 
De astros em puras noites deslumbradas! 

Ser nostálgico choupo ao entardecer, 
De ramos graves, plácidos, absortos 
Na mágica tarefa de viver! 

Ser haste, seiva, ramaria inquieta, 
Erguer ao sol o coração dos mortos 
Na urna de ouro de uma flor aberta!... 


Florbela Espanca
‘A Mensageira das Violetas’



?

Quem fez ao sapo o leito carmesim
De rosas desfolhadas à noitinha?
E quem vestiu de monja a andorinha,
E perfumou as sombras do jardim?

Quem cinzelou estrelas no jasmim?
Quem deu esses cabelos de rainha
Ao girassol? Quem fez o mar? E a minha
Alma a sangrar? Quem me criou a mim?

Quem fez os homens e deu vida aos lobos?
Santa Tereza em místicos arroubos?
Os monstros? E os profetas? E o luar?

Quem nos deu asas para andar de rastros?
Quem nos deu olhos para ver os astros?
- Sem nos dar braços para os alcançar?


Florbela Espanca
‘A Mensageira das Violetas’



IN MEMORIAM

Ao meu morto querido 

Na cidade de Assis, Il Poverello 
Santo, três vezes santo, andou pregando 
Que o sol, a terra, a flor, o rocio brando, 
Da pobreza o tristíssimo flagelo, 

Tudo quanto há de vil, quanto há de belo, 
Tudo era nosso irmão! - E assim sonhando, 
Pelas estradas da Umbria foi forjando 
Da cadeia do amor o maior elo! 

"Olha o nosso irmão Sol, nossa irmã Água..." 
Ah! Poverello! Em mim, essa lição 
Perdeu-se como vela em mar de mágoa 

Batida por furiosos vendavais! 
- Eu fui na vida a irmã de um só irmão, 
E já não sou a irmã de ninguém mais! 


Florbela Espanca
‘A Mensageira das Violetas’



ÁRVORES DO ALENTEJO

Horas mortas... Curvada aos pés do monte 
A planície é um brasido... e, torturadas, 
As árvores sangrentas, revoltadas, 
Gritam a Deus a bênção duma fonte! 

E quando, manhã alta, o sol posponte 
A ouro a giesta, a arder, pelas estradas, 
Esfíngicas, recortam desgrenhadas 
Os trágicos perfis no horizonte! 

Árvores! Corações, almas que choram, 
Almas iguais à minha, almas que imploram 
Em vão remédio para tanta mágoa! 

Árvores! Não choreis! Olhai e vede: 
- Também ando a gritar, morta de sede, 
Pedindo a Deus a minha gota d´água! 


Florbela Espanca
‘A Mensageira das Violetas’



QUEM SABE?...

Ao Ângelo 

Queria tanto saber porque sou eu! 
Quem me enjeitou neste caminho escuro? 
Queria tanto saber porque seguro 
Nas minhas mãos o bem que não é meu! 

Quem me dirá se, lá no alto, o céu 
Também é para o mau, para o perjuro? 
Para onde vai a alma, que morreu? 
Queria encontrar Deus! Tanto o procuro! 

A estrada de Damasco, o meu caminho, 
O meu bordão de estrelas de ceguinho, 
Água da fonte de que estou sedenta! 

Quem sabe se este anseio de eternidade, 
A tropeçar na sombra, é a verdade, 
É já a mão de Deus que me acalenta? 


Florbela Espanca
In ‘A Mensageira das Violetas’



FRÊMITO DO MEU CORPO A PROCURAR-TE 

Frêmito do meu corpo a procurar-te,
Febre das minhas mãos na tua pele 
Que cheira a âmbar, a baunilha e a mel, 
Doído anseio dos meus braços a abraçar-te,

Olhos buscando os teus por toda a parte, 
Sede de beijos, amargor de fel, 
Estonteante fome, áspera e cruel, 
Que nada existe que a mitigue e a farte! 

E vejo-te tão longe! Sinto tua alma 
Junto da minha, uma lagoa calma, 
A dizer-me, a cantar que não me amas... 

E o meu coração que tu não sentes, 
Vai boiando ao acaso das correntes, 
Esquife negro sobre um mar de chamas...


Florbela Espanca
‘A Mensageira das Violetas’


DIZE-ME, AMOR, COMO TE SOU QUERIDA

Dize-me, amor, como te sou querida,
Conta-me a glória do teu sonho eleito,
Aninha-me a sorrir junto ao teu peito,
Arranca-me dos pântanos da vida. 

Embriagada numa estranha lida,
Trago nas mãos o coração desfeito,
Mostra-me a luz, ensina-me o preceito
Que me salve e levante redimida!

Nesta negra cisterna em que me afundo,
Sem quimeras, sem crenças, sem turnura,
Agonia sem fé dum moribundo,

Grito o teu nome numa sede estranha,
Como se fosse, amor, toda a frescura
Das cristalinas águas da montanha!


Florbela Espanca
‘A Mensageira das Violetas’



FALO DE TI ÀS PEDRAS DAS ESTRADAS

Falo de ti às pedras das estradas,
E ao sol que e louro como o teu olhar,
Falo ao rio, que desdobra a faiscar,
Vestidos de princesas e de fadas;

Falo às gaivotas de asas desdobradas,
Lembrando lenços brancos a acenar,
E aos mastros que apunhalam o luar
Na solidão das noites consteladas;

Digo os anseios, os sonhos, os desejos
Donde a tua alma, tonta de vitória,
Levanta ao céu a torre dos meus beijos!

E os meus gritos de amor, cruzando o espaço,
Sobre os brocados fúlgidos da glória, 
São astros que me tombam do regaço!


Florbela Espanca
‘A Mensageira das Violetas’



PERDI OS MEUS FANTÁSTICOS CASTELOS

Perdi meus fantásticos castelos
Como névoa distante que se esfuma...
Quis vencer, quis lutar, quis defendê-los:
Quebrei as minhas lanças uma a uma!

Perdi minhas galeras entre os gelos
Que se afundaram sobre um mar de bruma...
- Tantos escolhos! Quem podia vê-los? – 
Deitei-me ao mar e não salvei nenhuma!

Perdi a minha taça, o meu anel,
A minha cota de aço, o meu corcel,
Perdi meu elmo de ouro e pedrarias...

Sobem-me aos lábios súplicas estranhas...
Sobre o meu coração pesam montanhas...
Olho assombrada as minhas mãos vazias...


Florbela Espanca
‘A Mensageira das Violetas’



O TEU OLHAR 

Passam no teu olhar nobres cortejos,
Frotas, pendões ao vento sobranceiros,
Lindos versos de antigos romanceiros,
Céus do Oriente, em brasa, como beijos,

Mares onde não cabem teus desejos;
Passam no teu olhar mundos inteiros,
Todo um povo de heróis e marinheiros,
Lanças nuas em rútilos lampejos;

Passam lendas e sonhos e milagres!
Passa a Índia, a visão do Infante em Sagres,
Em centelhas de crença e de certeza!

E ao sentir-se tão grande, ao ver-te assim,
Amor, julgo trazer dentro de mim
Um pedaço da terra portuguesa!


Florbela Espanca
‘A Mensageira das Violetas’



OS MEUS VERSOS

Rasga esses versos que eu te fiz, amor!
Deita-os ao nada, ao pó, ao esquecimento,
Que a cinza os cubra, que os arraste o vento,
Que a tempestade os leve aonde for!

Rasga-os na mente, se os souberes de cor,
Que volte ao nada o nada de um momento!
Julguei-me grande pelo sentimento,
E pelo orgulho ainda sou maior!...

Tanto verso já disse o que eu sonhei!
Tantos penaram já o que eu penei!
Asas que passam, todo o mundo as sente...

Rasgas os meus versos... Pobre endoidecida!
Como se um grande amor cá nesta vida
Não fosse o mesmo amor de toda a gente!...


Florbela Espanca
‘A Mensageira das Violetas’



O MEU SONETO

Em atitudes e em ritmos fleugmáticos, 
Erguendo as mãos em gestos recolhidos, 
Todos brocados fúlgidos, hieráticos, 
Em ti andam bailando os meus sentidos... 

E os meus olhos serenos, enigmáticos 
Meninos que na estrada andam perdidos, 
Dolorosos, tristíssimos, extáticos, 
São letras de poemas nunca lidos... 

As magnólias abertas dos meus dedos 
São mistérios, são filtros, são enredos 
Que pecados d´amor trazem de rastros... 

E a minha boca, a rútila manhã, 
Na Via Láctea, lírica, pagã, 
A rir desfolha as pétalas dos astros!... 


Florbela Espanca
‘A Mensageira das Violetas’


O MAIOR BEM 

Este querer-te bem sem me quereres, 
Este sofrer por ti constantemente, 
Andar atrás de ti sem tu me veres 
Faria piedade a toda a gente. 

Mesmo a beijar-me a tua boca mente... 
Quantos sangrentos beijos de mulheres
Pousa na minha a tua boca ardente, 
E quanto engano nos seus vãos dizeres!... 

Mas que me importa a mim que me não queiras, 
Se esta pena, esta dor, estas canseiras, 
Este mísero pungir, árduo e profundo, 

Do teu frio desamor, dos teus desdéns, 
É, na vida, o mais alto dos meus bens? 
É tudo quanto eu tenho neste mundo?


Florbela Espanca
‘A Mensageira das Violetas’











POEMAS DO LIVRO "TROCANDO OLHARES"




Vozes Do Mar

Quando o sol vai caindo sobre as águas
Num nervoso delíquio d"oiro intenso,
Donde vem essa voz cheia de mágoas
Com que falas à terra, ó mar imenso?…

Tu falas de festins, e cavalgadas
De cavaleiros errantes ao luar?
Falas de caravelas encantadas
Que dormem em teu seio a soluçar?

Tens cantos d"epopeias?Tens anseios
D"amarguras? Tu tens também receios,
Ó mar cheio de esperança e majestade?!

Donde vem essa voz,ó mar amigo?…
… Talvez a voz do Portugal antigo,
Chamando por Camões numa saudade!

Florbela Espanca
In “Trocando olhares” (1916)


Meu amor

De ti somente um nome sei, amor.
É pouco, é muito pouco e é bastante
Para que esta paixão doida e constante
Dia após dia cresça com vigor!

Como de um sonho vago e sem fervor
Nasce uma paixão assim tão inquietante!
Meu doido coração triste e amante
Como tu buscas o ideal na dor!

Isto era só quimera, fantasia,
Mágoa de sonho que se esvai num dia,
Perfume leve dum rosal do céu...

Paixão ardente, louca isto é agora,
Vulcão que vai crescendo hora por hora...
O meu amor, que imenso amor o meu!

Florbela Espanca
In “Trocando olhares” (1916)


Dedicatória



É só teu o meu livro; guarda-o bem;
Nele floresce o nosso casto amor
Nascido nesse dia em que o destino
Uniu o teu olhar à minha dor!

Florbela Espanca
In “Trocando olhares” (1916)




Que diferença!...
As Quadras dele (1)


Quando passas a meu lado,
E que olhas para mim,
Tornas-te da cor da rosa,
E eu da cor do jasmim.

Vê tu que expressões dif´rentes
Da nossa mesma ansiedade:
A cor da rosa é despeito,
A palidez é saudade!

Saudades e amarguras
Tenho eu todos os dias,
Não podem pois adejar
Em meus versos, alegrias

"Saudades e amarguras
Tenho eu todas as horas,
Quem noites só conheceu,
Não pode cantar auroras."


Florbela Espanca
In “Trocando olhares” (1916)



As quadras dele (II)

Digo pra mim quando oiço
O teu lindo riso franco,
"São seus lábios espalhabdo,
As folhas dun lírio branco..."

Perguntei às violetas
Se não tinham coração,
Se o tinham, porque 'scondidas
Na folhagem sempre estão?!

Responderam-me a chorar,
Com voz de quem muito amou:
Sabeis que dor os desfez,
Ou que traição os gelou?

Meu coração, inundado
Pela luz do teu olhar,
Dorme quieto como um lírio,
Banhado pelo luar.

Quando o ouvido vier
Teu amor amortalhar,
Quero a minha triste vida,
Na mesma cova, enterrar.

Eu sei que me tens amor,
Bem o leio no teu olhar,
O amor quando é sentido
Não se pode disfarçar.

Os olhos são indiscretos;
Revelam tudo que sentem,
Podem mentir os teus lábios,
Os olhos, esses, não mentem.

Bendita seja a desgraça,
Bendita a fatalidade,
Bendito sejam teus olhos
Onde anda a minha saudade.

Não há amor neste mundo
Como o que eu sinto por ti,
Que me ofertou a desgraça
No momento em que te vi.

O teu grande amor por mim,
Durou, no teu coração,
O espaço duma manhã,
Como a rosa da canção.

Quando falas, dizem todos:
Tem uma voz que é um encanto
Só falando, faz perder
Todo juízo a um santo.

Enquanto eu longe de ti
Ando, perdida de zelos,
Afogam-se outros olhares
Nas ondas dos teus cabelos.

Dizem-me que te não queira
Que tens, nos olhos, traição.
Ai, ensinem-me a maneira
De dar leis ao coração!

Tanto ódio e tanto amor
Na minha alma contenho;
Mas o ódio inda é maior
Que o doido amor que te tenho.

Odeio teu doce sorriso,
Odeio teu lindo olhar,
E ainda mais a minh'alma
Por tanto e tanto te amar!

Quando o teu olhar infindo
Poisa no meu, quase a medo,
Temo que alguém advinhe
O nosso casto segredo.

Logo minh'alma descansa;
Por saber que nunca alguém
Pode imaginar o fogo
Que o teu frio olhar contém.

Quem na vida tem amores
Não pode viver contente,
É sempre triste o olhar
Daquele que muito sente.

Adivinhar o mistério
Da tua alma quem me dera!
Tens nos olhos o outono,
Nos lábios a primavera...

Enquanto teus lábios cantam
Canções feitas de luar,
Soluça cheio de mágua
O teu misterioso olhar...

Com tanta contradição,
O que é que a tua alma sente?
És alegre como a aurora,
E triste como um poente...

Desabafa no meu peito
Essa amargura tão louca,
Que é tortura nos teus olhos
E riso na tua boca!

Os teus dente pequeninos
Na tua boca mimosa,
São pedacitos de neve
Dentro de um cálix de rosa.

O lindo azul do céu
E a amargura infinita
Casaram. Deles nasceu
A tua boca bendita!

Florbela Espanca
In “Trocando olhares” (1916)


(6)

Teus olhos têm uma cor
Duma expressão tão divina,
Tão misteriosa, tão triste,
Como foi a minha sina.

É uma expressão de saudade
Vogando num mar incerto.
Parecem negros de longe,
Parecem azuis de perto.

Mas nem negros nem azuis
São teus olhos, meu amor,
Seriam da cor da mágoa
Se a mágoa tivesse cor!

Florbela Espanca
In “Trocando olhares” (1916)


Poetas

Ai as almas dos poetas
Não as entende ninguém;
São almas de violetas
Que são poetas também.

Andam perdidas na vida,
Como as estrelas no ar;
Sentem o vento gemer
Ouvem as rosas chorar!

Só quem embala no peito
Dores amargas e secretas
É que em noites de luar
Pode entender os poetas

E eu que arrasto amarguras
Que nunca arrastou ninguém
Tenho alma pra sentir
A dos poetas também!

Florbela Espanca
In “Trocando olhares” (1916)


Saudades

Saudades! Sim... talvez... e porque não?...
Se o nosso sonho foi tão alto e forte
Que bem pensara vê-lo até à morte
Deslumbrar-me de luz o coração!

Esquecer! Para quê?...Ah! Como é vão!
Que tudo isso, Amor, nos não importe.
Se ele deixou beleza que conforte
Deve-nos ser sagrado como o pão!

Quantas vezes, Amor, já te esqueci,
Para mais doidamente me lembrar,
Mais doidamente me lembrar de ti!

E quem dera que fosse sempre assim:
Quanto menos quisesse recordar
Mais a saudade andasse presa a mim!

Florbela Espanca
In “Trocando olhares” (1916)


Cantigas leva-as ao vento

A lembrança dos teus beijos
Inda na minh´alma existe,
Como um perfume perdido.
Nas folhas dum livro triste.

Perfume tão esquisito
E de tal suavidade,
Que mesmo desapar´cido
Revive numa saudade!

Florbela Espanca
In “Trocando olhares” (1916)


A Doida

A noite passa, noivando.
Caem ondas de luar.
Lá passa a doida cantando
Que mais parece chorar!

Dizem que doi morte
D´alguém, que muito lhe quis,
Que endoideceu, triste sorte!
Que dor tão triste e tão forte!
Como um dido é infeliz!

Desde que ela endoideceu,
(Que triste vida, que mágoa!)
pobrezinha, olhando céu,
Chama o noivo que morreu
Com os olhos rasos d´água!

E a noite passa, noivando.
Passa noivando luar:
“Num suspiro doce e brando,
Podre doida vai cantando
Que esse teu canto, é chorar!”

Florbela Espanca
In “Trocando olhares” (1916)



O teu olhar 

Passam no teu olhar nobres cortejos,
Frotas, pendões ao vento sobranceiros,
Lindos versos de antigos romanceiros,
Céus do Oriente, em brasa, como beijos,

Mares onde não cabem teus desejos;
Passam no teu olhar mundos inteiros,
Todo um povo de heróis e marinheiros,
Lanças nuas em rútilos lampejos;

Passam lendas e sonhos e milagres!
Passa a Índia, a visão do Infante em Sagres,
Em centelhas de crença e de certeza!

E ao sentir-se tão grande, ao ver-te assim,
Amor, julgo trazer dentro de mim
Um pedaço da terra portuguesa!

Florbela Espanca
In “Trocando olhares” (1916)


Crisântemos

Sombrios mensageiros das violetas,
De longas e revoltas cabeleiras;
Brancos, sois o casto olhar das virgens
Pálidas que ao luar, sonham nas eiras.

Vermelhos, gargalhadas triunfantes,
Lábios quentes de sonhos e desejos,
Carícias sensuais d´amor e gozo;
Crisântemos de sangue, vós sois beijos!

Os amarelos riem amarguras,
Os roxos dizem prantos e torturas,
Há-os também cor de fogo, sensuais…

Eu amo os crisântemos misteriosos
Por serem lindos, tristes e mimosos,
Por ser a flor de que tu gostas mais!

Florbela Espanca
In “Trocando olhares” (1916)



Os Teus Olhos

O Céu azul, não era
Dessa cor, antigamente;
Era branco como um lírio,
Ou como estrela cadente.

Um dia, fez Deus uns olhos
Tão azuis como esses teus,
Que olharam admirados
A taça branca dos céus.

Quando sentiu esse olhar:
“Que doçura, que primor!”
Disse o céu, e ciumento,
Tornou-se da mesma cor!

Florbela Espanca
In “Trocando olhares” (1916)



Doce Milagre


O dia chora. Agonizo
Com ele meu doce amor.
Nem a sombra dum sorriso,
Na Natureza diviso,
A dar-lhe vida e frescor!

A triste bruma, pesada,
Parece, detrás da serra
Fina renda, esfarrapada,
De Malines, desdobrada
Em mil voltas pela terra!

(O dia parece um réu.
Bate a chuva nas vidraças.)

As avezitas, coitadas,
‘Squeceram hoje o cantar.
As flores pendem, fanadas
Nas finas hastes, cansadas
De tanto e tanto chorar…

O dia parece um réu.
Bate a chuva nas vidraças.
É tudo um imenso véu.
Nem a terra nem o céu
Se distingue. Mas tu passas…

E o sol doirado aparece.
O dia é uma gargalhada.
A Natureza endoidece
A cantar. Tudo enternece
A minh’alma angustiada!

Rasgam-se todos os véus
As flores abrem, sorrindo.
Pois se eu vejo os olhos teus
A fitarem-se nos meus,
Não há de tudo ser lindo?!

Se eles são prodigiosos
Esses teus olhos suaves!
Basta fitá-los, mimosos,
Em dias assim chuvosos,
Para ouvir cantar as aves!

A Natureza, zangada,
Não quer os dias risonhos?…
Tu passas… e uma alvorada
Pra mim abre perfumada,
Enche-me o peito de sonhos!

Florbela Espanca
In “Trocando olhares” (1916)


Folhas de rosa

Todas as prendas que me deste, um dia,
Guardei-as, meu encanto, quase a medo,
E quando a noite espreita o pôr-do-sol,
Eu vou falar com elas em segredo …

E falo-lhes d’amores e de ilusões,
Choro e rio com elas, mansamente…
Pouco a pouco o perfume do outrora
Flutua em volta delas, docemente …

Pelo copinho de cristal e prata
Bebo uma saudade estranha e vaga,
Uma saudade imensa e infinita
Que, triste, me deslumbra e m’embriaga

O espelho de prata cinzelada,
A doce oferta que eu amava tanto,
Que reflectia outrora tantos risos,
E agora reflecte apenas pranto,

E o colar de pedras preciosas,
De lágrimas e estrelas constelado,
Resumem em seus brilhos o que tenho
De vago e de feliz no meu passado…

Mas de todas as prendas, a mais rara,
Aquela que mals fala à fantasia,
São as folhas daquela rosa branca
Que a meus pés desfolhaste, aquele dia…

Florbela Espanca
In “Trocando olhares” (1916)


Junquilhos…

Nessa tarde mimosa de saudade
Em que eu te vi partir, ó meu amor,
Levaste-me a minh’alma apaixonada
Nas folhas perfumadas duma flor.

E como a alma, dessa florzita,
Que é minha, por ti palpita amante!
Oh alma doce, pequenina e branca,
Conserva o teu perfume estonteante!

Quando fores velha, emurchecida e triste,
Recorda ao meu amor, com teu perfume
A paixão que deixou e qu’inda existe…

Ai, dize-lhe que se lembre dessa tarde,
Que venha aquecer-se ao brando lume
Dos meus olhos que morrem de saudade!

Florbela Espanca
In “Trocando olhares” (1916)



Li um dia, não sei onde

Li um dia, não sei onde,
Que em todos os namorados
Uns amam muito, e os outros
Contentam-se em ser amados.

Fico a cismar pensativa
Neste mistério encantado…
Digo pra mim: de nós dois
Quem ama e quem é amado?…

Florbela Espanca
In “Trocando olhares” (1916)


Carta Para Longe

O tempo vai um encanto,
A Primavera ’stá linda,
Voltaram as andorinhas…
E tu não voltaste ainda!…

Porque me fazes sofrer?
Porque te demoras tanto?
A Primavera ’stá linda…
O tempo vai um encanto…

Tu não sabes, meu amor,
Que, quem ’spera, desespera?
O tempo está um encanto…
E, vai linda a Primavera…

Há imensas andorinhas;
Cobrem a terra e o céu!
Elas voltaram aos ninhos…
Volta também para o teu!…

Adeus. Saudades do sol,
Da madressilva e da hera;
Respeitosos cumprimentos
Do tempo e da Primavera.

Mil beijos da tua q’rida,
Que é tua por toda a vida.

Florbela Espanca
In “Trocando olhares” (1916)


Triste Passeio

Vou pela estrada, sozinha.
Não me acompanha ninguém.
- Num atalho, em voz mansinha:
"Como está ele? Está bem?"

É a toutinegra curiosa;
Há em mim um doce enleio...
Nisto pergunta uma rosa:
"Então ele? Inda não veio?"

Sinto-me triste, doente...
E nem me deixam esquecê-lo!...
Nisto o sol impertinente:
"Sou um fio do seu cabelo..."

Ainda bem. É noitinha.
Enfim já posso pensar!
Ai, já me deixam sozinha!
De repente, oiço o luar:

"Que imensa mágoa me invade,
Que dor o meu peito sente!
Tenho uma enorme saudade!
De ver o teu doce ausente!"

Volto a casa. Que tristeza!
Inda é maior minha dor...
Vem depressa. A natureza
Só fala de ti, amor!

Florbela Espanca
In “Trocando olhares” (1916)


Mentiras

Tu julgas que eu não sei que tu me mentes
Quando o teu doce olhar pousa no meu?
Pois julgas que eu não sei o que tu sentes?
Qual a imagem que alberga o peito meu?

Ai, se o sei, meu amor! Em bem distingo
O bom sonho da feroz realidade…
Não palpita d´amor, um coração
Que anda vogando em ondas de saudade!

Embora mintas bem, não te acredito;
Perpassa nos teus olhos desleais
O gelo do teu peito de granito…

Mas finjo-me enganada, meu encanto,
Que um engano feliz vale bem mais
Que um desengano que nos custa tanto!


Florbela Espanca
In “Trocando olhares” (1916)



Cemitérios

Cemitério da minha terra,
Paredes a branquejar;
Que bom será lá dormir
Um bom sonho sem sonhar!...

De manhã, muito cedinho
Dormir de leve, embalada
P´las canções das raparigas
Que gentis passam na ´strada.

Cantem mais devagarinho,
Mais baixinho camponesas,
Que os vossos cantos pareçam
Tristes preces, doces rezas...

À noitinha, ao sol posto
Ouvindo as Ave-Marias!
Meu Deus, que suavidade!
Que paz de todos os dias!

Os murmúrios dos ciprestes
São doces canções aladas
Serenatas de paixão
Às almas enamoradas!

O luar imaculado
Em noites puras, serenas,
É um rio, que vai fazendo
Florir as açuçenas...

Canta triste o rouxinol
Beijam-se lindos uns goivos,
E no fundo duma campa
Dormem felizes uns noivos...

Dum túmulo a outro se fala:
"Porque morreste tão nova?
Porque tão cedo vieste
Dormir numa fria cova?"

"Eu era infeliz na terra,
Ninguém me compreendia,
Quando a minh ´alma chorava
Todos pensavam que eu ria..."

"E tu triste e tão linda
Com olhos de quem chorou?"
"Eu tive um amor na vida
Que por outra me deixou!"


"E tu?" "Sozinha no mundo
Nunca tive o que outros têm:
Pai, mãe ou um namorado...
Morri por não ter ninguém!..."

Uma diz: "Chorava um filho
Que é uma dor sem piedade",
Outra diz num vago enleio:
"Eu cá, morri de saudade!"

De todas as campas sai
Um choro que é um mistério
É então que os vivos sentem
As vozes do cemitério...

... Vão-se calando os soluços...
E as pobres mortas de dor
Vão dormindo, acalentando
Uns sonhos brancos d´amor...

Invejo estes doces sonhos
Neste terreno funéreo.
Ai quem me dera dormir
No meu lindo cemitério!


Florbela Espanca
In “Trocando olhares” (1916)



A Mulher 

Ó Mulher! Como és fraca e como és forte!
Como sabes ser doce e desgraçada!
Como sabes fingir quando em teu peito
A tua alma se estorce amargurada!
Quantas morrem saudosa duma imagem.
Adorada que amaram doidamente!
Quantas e quantas almas endoidecem
Enquanto a boca rir alegremente!
Quanta paixão e amor às vezes têm
Sem nunca o confessarem a ninguém
Doce alma de dor e sofrimento!
Paixão que faria a felicidade.
Dum rei; amor de sonho e de saudade,
Que se esvai e que foge num lamento!

Florbela Espanca
In “Trocando olhares” (1916)



No Hospital

À Théa

Na vasta enfermaria ela repoisa
Tão branca como orla do lençol.
Gorjeia a sua voz ternos queixumes,
Como no bosque à noite o roxinol.

É delicada e triste. O seu corpito
Tem o perfume casto da verbena.
Não mais brancas as magnólias brancas
Que sua boca tão branca e tõ pequena!

Oiço dizer: Seu rosto faz sonhar!
Serão pétalas de rosa ou luar?
Talvez a neve que chorou o inverno…

Mas vendo-a assim tão branca, penso eu:
É um astro cansado, que do céu
Veio repoisar nas trevas dum inferno!

Florbela Espanca
In “Trocando olhares” (1916)


Os meus versos

Rasga esses versos que eu te fiz, Amor!
Deita-os ao nada, ao pó, ao esquecimento,
Que a cinza os cubra, que os arraste o vento,
Que a tempestade os leve aonde for!

Rasga-os na mente, se os souberes de cor,
Que volte ao nada o nada de um momento!
Julguei-me grande pelo sentimento,
E pelo orgulho ainda sou maior!...

Tanto verso já disse o que eu sonhei!
Tantos penaram já o que eu penei!
Asas que passam, todo o mundo as sente...

Rasgas os meus versos... Pobre endoidecida!
Como se um grande amor cá nesta vida
Não fosse o mesmo amor de toda a gente!...

Florbela Espanca
In “Trocando olhares” (1916)


Aos olhos dele

Não acredito em nada. As minhas crenças
Voaram como voa a pomba mansa,
Pelo azul do ar. E assim fugiram
As minhas doces crenças de criança.

Fiquei então sem fé; e a toda gente
Eu digo sempre, embora magoada:
Não acredito em Deus e a Virgem Santa
É uma ilusão apenas e mais nada!

Mas avisto os teus olhos, meu amor,
Duma luz suavíssima de dor...
E grito então ao ver esses dois céus:

Eu creio, sim eu creio na Virgem Santa
Que criou esse brilho que me encanta!
Eu creio, sim, creio, eu creio em Deus!

Florbela Espanca
In “Trocando olhares” (1916)


Súplica (II)

Olha pra mim, amor, olha pra mim;
Meus olhos andam doidos por te olhar!
Cega-me com o brilho de teus olhos
Que cega ando eu há muito por te amar.

O meu colo é arrninho imaculado
Duma brancura casta que entontece;
Tua linda cabeça loira e bela
Deita em meu colo, deita e adormece!

Tenho um manto real de negras trevas
Feito de fios brilhantes d`astros belos
Pisa o manto real de negras trevas
Faz alcatifa, oh faz, de meus cabelos!

Os meus braços são brancos como o linho
Quando os cerro de leve, docemente…
Oh! Deixa-me prender-te e enlear-te
Nessa cadeia assim etemamente! …

Vem para mim,amor…Ai não desprezes
A minha adoração de escrava louca!
Só te peço que deixes exalar
Meu último suspiro na tua boca!…

Florbela Espanca
In “Trocando olhares” (1916)



Embalada num sonho aurifulgente

Embalada num sonho aurifulgente
Sei apenas que sonho vagamente
Ao avistar, amor, teus olhos belos,

Em castelãs altivas, medievais,
Que choram às janelas ogivais,
Perdidas em românticos castelos!

Florbela Espanca
In “Trocando olhares” (1916)


Mistério D´Amor

Um mistério que trago dentro em mim
Ajuda-me, minh’alma a descobrir…
É um mistério de sonho e de luar
Que ora me faz chorar, ora sorrir!

Viemos tanto tempo tão amigos!
E sem que o teu olhar puro toldasse
A pureza do meu. E sem que um beijo
As nossas bocas rubras desfolhasse!

Mas um dia, uma tarde… houve um fulgor,
Um olhar que brilhou… e mansamente…
Ai, dize ó meu encanto, meu amor:

Porque foi que somente nessa tarde
Nos olhamos assim tão docemente
Num grande olhar d’amor e de saudade?!

Florbela Espanca
In “Trocando olhares” (1916)


Escreve-Me…

Escreve-me! Ainda que seja só
Uma palavra, uma palavra apenas,
Suave como o teu nome e casta
Como um perfume casto d’açucenas!

Escreve-me! Há tanto, há tanto tempo
Que te não vejo, amor! Meu coração
Morreu já, e no mundo aos pobres mortos
Ninguém nega uma frase d’oração!

“Amo-te!” Cinco letras pequeninas,
Folhas leves e tenras de boninas,
Um poema d’amor e felicidade!

Não queres mandar-me esta palavra apenas?
Olha, manda então… brandas… serenas…
Cinco pétalas roxas de saudade…

Florbela Espanca
In “Trocando olhares” (1916)



O meu Alentejo

Meio-dia. O sol a prumo cai ardente,
Dourando tudo…ondeiam nos trigais
D´ouro fulvo, de leve…docemente…
As papoulas sangrentas, sensuais…

Andam asas no ar; e raparigas,
Flores desabrochadas em canteiros,
Mostram por entre o ouro das espigas
Os perfis delicados e trigueiros…

Tudo é tranqüilo, e casto, e sonhador…
Olhando esta paisagem que é uma tela
De Deus, eu penso então: onde há pintor,

Onde há artista de saber profundo,
Que possa imaginar coisa mais bela,
Mais delicada e linda neste mundo?!

Florbela Espanca
In “Trocando olhares” (1916)


A Voz De Deus

Ó rosas que baixais as castas fontes
Quando, à tarde, vos beija o sol poente,
Dizei-me que murmúrios vos segreda
O sol que vos beija docemente?…

Ó luar cristalino e abençoado
Por que entristeces tu em noites belas
Quando chora baixinho o rouxinol
Um choro só ouvido p´las estrelas?…

Mistério das coisas! Em tudo existe
Um coração que sente e que palpita
Desde o sol rubro até à urze triste!

Ó mistério das coisas! Voz de Deus
Em tudo eternamente sê bendita
Na terra imensa assim como nos céus!

Florbela Espanca
In “Trocando olhares” (1916)


Filhos

Filhos são as nossas almas,
Desabrochadas em flores;
Filhos, estrelas caídas
No fundo das nossas dores!

Filhos, aves que chilreiam
No ninho do nosso amor,
Mensageiros da felicidade
Mandados pelo Senhor!

Filhos, sonhos adorados,
Beijas que nascem de risos;
Sol que aquenta e dá luz
E se desfaz em sorrisos!

Em todo o peito bendito
Criado pelo bom Deus,
Há uma alma de mãe
Que sofre p´los filhos seus!

Filhos! Na su´alma casta,
A nossa alma revive…
Eu sofro pelas saudades
Dos filhos que nunca tive!…

Florbela Espanca
In “Trocando olhares” (1916)


Ás mães de Portugal

Ó mães doloridas, celestiais,
Misericordiosas,
Ó mães d´olhos benditos, liriais,
Ó mães piedosas

Calai as vossas mágoas, vossas dores!
Longe na crua guerra
Vossos filhos defendem, vencedores,
A nossa linda terra!

E se eles defendem a bandeira
Da terra que adorais,
Onde viram um dia a luz primeira
Ó mães, por que chorais?!

Uma lágrima triste, agora é
Cobardia, fraqueza!
Nos campos de batalha cai de pé
A alma portuguesa!

Pela terra de estrela e tomilhos,
De sol, e de luar,
Deixai ir combater os vossos filhos
Ao longe, heróis do mar!

Dum português bendito, sem igual
Eu sigo o mesmo trilho:
Por cada pedra deste Portugal
Eu arriscava um filho!

Por isso ó mãe doloridas, pelo leito
De morte, onde ajoelhais,
Esmagai vossa dor dentro do peito
Ó mães não choreis mais!

A pátria rouba os filhos, mas é mãe
A mãe de todos nós
Direito de a trair não tem ninguém
Ó mães nem sequer vós!

Florbela Espanca
In “Trocando olhares” (1916)


Doce Certeza

Por essa vida fora hás de adorar
Lindas mulheres, talvez; em ânsia louca,
Em infinito anseio hás de beijar
Estrelas d’oiro fulgindo em muita boca!

Hás de guardar em cofre perfumado
Cabelos d’oiro e risos de mulher,
Muito beijo d’amor apaixonado;
E não te lembrarás de mim sequer!..

Hás de tecer uns sonhos delicados…
Hão de por muitos olhos magoados,
Os teus olhos de luz andar imersos !

Mas nunca encontrarás p’ la vida fora,
Amor assim como este amor que chora
Neste beijo d’amor que são meus versos!

Florbela Espanca
In “Trocando olhares” (1916)


O Teu Segredo

O mundo diz-te alegre porque o riso
Desabrocha em tua boca, docemente
Como uma flor de luz! Meigo sorriso
Que na tua boca poisa alegremente!

Chama-te o mundo alegre. Ai, meu amor,
Só eu inda li bem nessa alegria!…
Também parece alegre a triste cor
Do sol, à tarde, ao despedir-se o dia!…

És triste; eu sei. Toda suavidade
Tão roxa, como é roxa uma saudade
É a tua alma, amor, cheia de mágoa.

Eu sei que és triste, sei. O meu olhar
Descobriu o segredo, que a cantar
Repoisa nos teus olhos rasos d’água!…

Florbela Espanca
In “Trocando olhares” (1916)


Sonho Morto

Nosso sonho morreu. Devagarinho,
Rezemos uma prece doce e triste
Por alma desse sonho! Vá… baixinho…
Por esse sonho, amor, que não existe!

Vamos encher-lhe o seu caixão dolente
De roxas violetas; triste cor!
Triste como ele, nascido ao sol poente,
O nosso sonho… ai!… reza baixo… amor…

Foste tu que o mataste! E foi sorrindo,
Foi sorrindo e cantando alegremente,
Que tu mataste o nosso sonho lindo!

Nosso sonho morreu… Reza mansinho…
Ai, talvez que rezando, docemente,
O nosso sonho acorde… mais baixinho…

Florbela Espanca
In “Trocando olhares” (1916)


Sonhando…

É noite pura e linda. Abro a minha janela
E olho suspirando o infinito céu,
Fico a sonhar de leve em muita coisa bela
Fico a pensar em ti e neste amor que é teu!

D’olhos fechados sonho. A noite é uma elegia
Cantando brandamente um sonho todo d’alma
E enquanto a lua branca o linho bom desfia
Eu sinto almas passar na noite linda e calma.

Lá vem a tua agora… Numa carreira louca
Tão perto que passou, tão perto à minha boca
Nessa carreira doida, estranha e caprichosa

Que a minh’alma cativa estremece, esvoaça
Para seguir a tua, como a folha de rosa
Segue a brisa que a beija… e a tua alma passa!…

Florbela Espanca
In “Trocando olhares” (1916)


Noites da Minha Terra

Anda o luar espalhando fios de prata
Pelos campos fora…Lírios a flux
Lança o azul do céu…e a terra grata
Transforma em mil perfumes toda a luz!

As estrelas cadentes vão ’spalhando
Lirios brancos também…agora a terra
Parece noiva linda, que sonhando
Caminha pró altar, além na serra…

É meia-noite agora. Tudo quieto
Na noite branda, dorme…Entreaberto
Vai esfolhando o lírio do luar

As alvas folhas, que cobrindo o céu,
E todo o mar e toda a terra, um véu
Branco,de noiva, lembra a palpitar!…

Florbela Espanca
In “Trocando olhares” (1916)


Cravos vermelhos

Bocas rubras de chama a palpitar,
Onde fostes buscar a cor, o tom,
Esse perfume doido a esvoaçar,
Esse perfume capitoso e bom?!

Sois volúpias em flor! Ó gargalhadas
Doidas de luz, ó almas feitas risos!
Donde vem essa cor, ó desvairadas,
Lindas flores d´esculturais sorrisos?!

…Bem sei vosso segredo…Um rouxinol
Que vos viu nascer, ó flores do mal
Disse-me agora: “Uma manhã, o sol,

O sol vermelho e quente como estriga
De fogo, o sol do céu de Portugal
Beijou a boca a uma rapariga…”

Florbela Espanca
In “Trocando olhares” (1916)

Meu Portugal

Meu Portugal querido,minha terra
De risos e quimeras e canções
Tens dentro em ti,esse teu peito encerra,
Tudo que faz bater os corações !

Tens o fado. A Canção triste e bendita
Que todos cantam pela vida fora;
O fado que dá vida e que palpita
Na calma da guitarra onde mora !

Tu tens também a embriaguês suave
Dos campos, da pisagem ao sol poente,
E esse sol é como um canto d’ave
Que expira à beira-mar, suavemente…

Tu tens, ó Pátria minha, as raparigas
Mais fescas, mais gentis do orbe imenso,
Tens os beijos, os risos, as cantigas
De seus lábios de sangue !… Às vezes, penso

Que tu és, Pátria minha,branca fada
Boa e linda que Deus sonhou um dia,
Para lançar no mundo,ó Pátria amada
A beleza eterna, a arte, a poesia !…

Florbela Espanca
In “Trocando olhares” (1916)

À Guerra!

Fala o canhão. Estala o riso da metralha
Os clarins muito ao longe tocam a reunir.
O Deus da guerra ri nos campos de batalha
E tu, ó Pátria, ergues-te a sorrir!

Vestes alva cota bordada e rosicleres
Desfraldas a bandeira rubra dos combates,
Levas no heróico seio a alma das mulheres
E ergue-se contigo a alma de teus vates!

Levanta-se do túmulo a voz dos teus heróis,
Cintila em tua fronte o brilho desses sóis,
Até o próprio mar t’incita a combater!

Nun’Alvares arranca a espada de glória
E diz-te em voz serena: «Em busca da vitória
Meu belo Portugal, combate até morrer!»

Florbela Espanca
In “Trocando olhares” (1916)


Oração

Ó Deus, senhor da terra, omnipotente,
Senhor do vasto mar! Senhor do céu!
Atentei esta prece humilde e crente,
Ouvi-me por piedade, Senhor meu!

Olhai por todos que amam sua terra,
Guiai aqueles que amam Portugal
Protegei os que mandam pela guerra
A defender o seu torrão natal!

Lançai o vosso olhar de piedade
Por todos os que arrastam ´ma saudade
Pela pátria distante, muito além!…

Consolai, ó meu Deus, os orfãnzinhos,
As mães, as noivas e os que têm ninhos
Despedaçados pela guerra. Amém.

Florbela Espanca
In “Trocando olhares” (1916)


Visões da Febre

Doente. Sinto-me com febre e com delírio
Enche-se o quarto de fantasmas
Uma visão desenha-se ante mim
Debruça-se de leve…

É uma mulher de sonho e suavidade
E disse-me baixinho:
“Eu me chamo Saudade,
E venho para levar-te o coração doente!

Não sofrerás mais; serás fria como o gelo;
Neste mundo de infâmia o que é que importa sê-lo
Nunca tu chorarás por tudo mais que vejas!”

E abriu-me o meu seio; tirou-me o coração
Despedaçado já sem uma palpitação,
Beijou-me e disse “Adeus!” E eu: “Bendita sejas!…”

Florbela Espanca
In “Trocando olhares” (1916)


Desejo

Quero-te ao pé de mim na hora de morrer.
Quero, ao partir, levar-te, todo suavidade,
Ó doce olhar de sonho, ó vida dum viver
Amortalhado sempre à luz duma saudade!

Quero-te junto a mim quando o meu rosto branco
Se ungir da palidez sinistra do não ser,
E quero ainda, amor, no meu supremo arranco
Sentir junto ao meu seio teu coração bater!

Que seja a tua mão tão branda como a neve
Que feche o meu olhar numa carícia leve
Em doce perpassar de pétala de lis…

Que seja a tua boca rubra como o sangue
Que feche a minha boca, a minha boca exangue!…
Ah, venha a morte já que eu morrerei feliz!…

Florbela Espanca
In “Trocando olhares” (1916)


Anseios

À minha Júlia

Meu doido coração aonde vais,
No teu imenso anseio de liberdade?
Toma cautela com a realidade;
Meu pobre coração olha cais!

Deixa-te estar quietinho! Não amais
A doce quietação da soledade?
Tuas lindas quimeras irreais
Não valem o prazer duma saudade!

Tu chamas ao meu seio, negra prisão!…
Ai, vê lá bem, ó doido coração,
Não te deslumbre o brilho do luar!

Não ´stendas tuas asas para o longe…
Deixa-te estar quietinho, triste monge,
Na paz da tua cela, a soluçar!…

Florbela Espanca
In “Trocando olhares” (1916)


O Espectro

Anda um triste fantasma atrás de mim
Segue-me os passos sempre! Aonde eu for,
Lá vai comigo…E é sempre, sempre assim
Como um fiel cão seguindo o seu Senhor!

Tem o verde dos sonhos transcendentes,
A ternura bem roxa das verbenas,
A ironia purpúrea dos poentes,
E tem também a cor das minhas penas!

Ri sempre quando eu choro, e se me deito,
Lá vai ele deitar-se ao pé do leito,
Embora eu lhe suplique:Faz-me a graça

De me deixares uma hora ser feliz!
Deixa-me em paz!…” Mas ele, sempre diz:
“Não te posso deixar, sou a Desgraça!”

Florbela Espanca
In “Trocando olhares” (1916)


Confissão

Aborreço-te muito. Em ti há qualquer cousa
De frio e de gelado, de pérfido e cruel,
Como um orvalho frio no tampo duma lousa,
Como em doirada taça algum amargo fel.

Odeio-te também. O teu olhar ideal
O teu perfil suave, a tua boca linda,
São belas expressões de todo o humano mal
Que inunda o mar e o céu e toda a terra infinda.

Desprezo-te também. Quando te ris e falas,
Eu fico-me a pensar no mal que tu calas
Dizendo que me queres em íntimo fervor!

Odeio-te e desprezo-te. Aqui toda a minh’alma
Confessa-to a rir, muito serena e calma!
Ah, como eu te adoro, como eu te quero, amor!…

Florbela Espanca
In “Trocando olhares” (1916)


Poder da Graça

Altiva e perfumada em cetinoso trem
Passeio uma mundana à luz da tarde quente,
O seu olhar gelado onde se lê desdém
Passeoa pela rua, altivo e insolente.

Para ninguém abaixa o orgulhoso olhar;
Passa o luxo da alta em luminoso trço;
Parece não ouvir da rua o murmurio,
Que seu olhar altivo é sempre triste e baço.

Nem o rir da criança ou o sorrir da luz
Dão vida àquela sombra altiva que seduz
A multidão absorta em roda, a murmurar…

Uma mendiga passa. É´ma beleza ideal!
Nasceu do seu olhar o céu de Portugal!
Abaixa então a rica o luminoso olhar!

Florbela Espanca
In “Trocando olhares” (1916)


Quem sabe?...

Queria tanto saber por que sou eu!
Quem me enjeitou neste caminho escuro?
Queria tanto saber por que seguro
Nas minhas mãos o bem que não é meu!

Quem me dirá se, lá no alto, o céu
Também é para o mal, para o perjuro?
Para onde vai a alma que morreu?
Queria encontrar-te Deus! tanto o procuro!

A estrada de damasco, omeu caminho,
O meu bordão de estrelas de ceguinho,
Água da fonte de que estou sedenta!

Quem sabe se este anseio de eternidade,
A tropeçar na sombra, é a verdade,
É já a mão de Deus que me acalenta?


Florbela Espanca
In “Trocando olhares” (1916)


Nunca mais!

Ó castos sonhos meus! Ó mágicas visões!
Quimeras cor de sol de fúlgidos lampejos!
Dolentes devaneios! Cetíneas ilusões!
Bocas que foram minhas florescendo beijos!

Vinde beijar-me a fronte ao menos um instante,
Que eu sinta esse calor, esse perfume terno;
Vivo a chorar a porta aonde outrora o Dante
Deixou toda a esp’rança ao penetrar o inferno!

Vinde sorrir-me ainda!Hei-de morrer contente
Cantando uma canção alegre, doidamente,
A luz desse sorriso, ó fugitivos ais!

Vinde beijar-me a boca ungir-me de saudade
Ó sonhos cor de sol da minha mocidade!
Cala-te lá destino!…
“Ó Nunca, nunca mais!…”

Florbela Espanca
In “Trocando olhares” (1916)


Triste Destino!

Quando às vezes o mar soluça tristemente
A praia abre-lhe os braços e deixa-o a gemer;
Embala-o com amor, de leve, docemente,
E canta-lhe cantigas pra adormecer!

Quando o Outono leva a folha rendilhada,
O vestido real da branda Primavera,
O rio abre-lhe os braços e leva amortalhada
A pequenina folha, essa ideal quimera!

O sol, agonizante e quase moribundo,
Estende os braços nus, alegre, para o mundo
Que o faz amortalhar em púrpura de lenda!

O sol, a folha, o mar tudo é feliz! Mas eu
Busco a mortalha minha até no alto céu!
E nem a cruz pra mim tem braços que m´estenda!

Florbela Espanca
In “Trocando olhares” (1916)


Humildade

Toda a terra que pisas, eu q’ria, ajoelhada,
Beijar terna e humilde em lânguido fervor;
Q’ria poisar fervente a boca apaixonada
Em cada passo teu, ó meu bendito amor!

De cada beijo meu, havia de nascer
Uma sangrenta flor! Ébria de luz, ardente!
No colo purpurino havia de trazer
Desfeito no perfume o mist’rioso Oriente!

Q’ria depois colher essas flores reais,
Essas flores de sonho, estranhas, sensuais,
E lançar-tas aos pés em perfumados molhos.

Bem paga ficaria, ó meu cruel amante!
Se, sobre elas, eu visse apenas um instante
Cair como um orvalho os teus divinos olhos!

Florbela Espanca
In “Trocando olhares” (1916)



Orações de Joelhos

Bendita seja a mãe que te gerou!
Bendito o leite que te fez crescer!
Bendito o berço aonde te embalou
A tua ama pra te adormecer!

Bendito seja o brilho do luar
Da noite em que nasceste tão suave,
Que deu essa candura ao teu olhar
E à tua voz esse gorjeio d’ave!

Benditos sejam todos que te amarem!
Os que em volta de ti ajoelharem
Numa grande paixão, fervente, louca!

E se mais, que eu, um dia te quiser
Alguém, bendita seja essa mulher!
Bendito seja o beijo dessa boca!

Florbela Espanca
In “Trocando olhares” (1916)


Aos olhos dele


Não acredito em nada. As minhas crenças
Voaram como voa a pomba mansa,
Pelo azul do ar. E assim fugiram
As minhas doces crenças de criança.

Fiquei então sem fé; e a toda gente
Eu digo sempre, embora magoada:
Não acredito em Deus e a Virgem Santa
É uma ilusão apenas e mais nada!

Mas avisto os teus olhos, meu amor,
Duma luz suavíssima de dor...
E grito então ao ver esses dois céus:

Eu creio, sim eu creio na Virgem Santa
Que criou esse brilho que me encanta!
Eu creio, sim, creio, eu creio em Deus!


Florbela Espanca
In “Trocando olhares” (1916)


Desdém

Andas dum lado pro outro
Pela rua passeando;
Finges que não queres ver
Mas sempre me vais olhando.

É um olhar fugidio,
Olhar que dura um instante,
Mas deixa um rasto de estrelas
O doce olhar saltitante…

É esse rasto bendito
Que atraiçoa o teu olhar,
Pois é tão leve e fugaz
Que eu nem o sinto passar!

Quem tem uns olhos assim
E quer fingir o desdém,
Não pode nem um instante
Olhar os olhos d’alguém…

Por isso vai caminhando…
E se queres a muita gente
Demonstrar que me desprezas
Olha os meus olhos de frente!…

Florbela Espanca
In “Trocando olhares” (1916)


Rústica

Ser a moça mais linda do povoado,
Pisar, sempre contente, o mesmo trilho,
Ver descer sobre o ninho aconchegado
A bênção do Senhor em cada filho.

Um vestido de chita bem lavado,
Cheirando a alfazema e a tomilho…
Com o luar matar a sede ao gado,
Dar às pombas o sol num grão de milho…

Ser pura como a água da cisterna,
Ter confiança numa vida eterna
Quando descer à “terra da verdade”…

Meu Deus, dai-me esta calma, esta pobreza!
Dou por elas meu trono de Princesa,
E todos os meus Reinos de Ansiedade.

Florbela Espanca
In “Trocando olhares” (1916)


A Anto!

Poeta da saudade, ó meu poeta qu´rido
Que a morte arrebatou em seu sorrir fatal,
Ao escrever o Só pensaste enternecido
Que era o mais triste livro deste Portugal,

Pensaste nos que liam esse teu missal,
Tua bíblia de dor, teu chorar sentido
Temeste que esse altar pudesse fazer mal
Aos que comungam nele a soluçar contigo!

Ó Anto! Eu adoro os teus estranhos versos,
Soluços que eu uni e que senti dispersos
Por todo o livro triste! Achei teu coração…

Amo-te como não te quis nunca ninguém,
Como se eu fosse, ó Anto, a tua própria mãe
Beijando-te já frio no fundo do caixão!

Florbela Espanca
In “Trocando olhares” (1916)


Escuta…

À Beatriz Carvalho

Escuta, amor, escuta a voz que ao teu ouvido
Te canta uma canção na rua em que morei,
Essa soturna voz há de contar-te, amigo
Por essa rua minha os sonhos que sonhei!

Fala d’amor a voz em tom enternecido,
Escuta-a com bondade. O muito que te amei
Anda pairando aí em sonho comovido
A envolver-te em oiro!… Assim s’envolve um rei!

Num nimbo de saudade e doce como a asa
Recorta-se no céu a minha humilde casa
Onde ficou minh’alma assim como penada

A arrastar grilhões como um fantasma triste.
É dela a voz que fala, é dela a voz que existe
Na rua em que morei… Anda crucificada!

Florbela Espanca
In “Trocando olhares” (1916)


Sol Posto

Sol posto. O sino ao longe dá Trindades
Nas ravinas do monte andam cantando
As cigarras dolentes… E saudades
Nos atalhos parecem dormitando…

É esta a hora em que a suave imagem
Do bem que já foi nosso nos tortura
O coração no peito, em que a paisagem
Nos faz chorar de dor e d’amargura…

É a hora também em que cantando
As andorinhas vão p’lo meio das ruas
Para os ninhos, contentes, chilreando…

Quem me dera também, amor, que fosse
Esta a hora de todas a mais doce
Em que eu unisse as minhas mãos às tuas!…

Florbela Espanca
In “Trocando olhares” (1916)


Estrela Cadente

Traço de luz… lá vai! Lá vai! Morreu.
Do nosso amor me lembra a suavidade…
Da estrela não ficou nada no céu
Do nosso sonho em ti nem a saudade!

Pra onde iria a ’strela? Flor fugida
Ao ramalhete atado no infinito…
Que ilusão seguiria entontecida
A linda estrela de fulgir bendito?…

Aonde iria, aonde iria a flor?
(Talvez, quem sabe?… ai quem soubesse, amor!)
Se tu o vires minha bendita estrela

Alguma noite… Deves conhecê-lo!
Falo-te tanto nele!… Pois ao vê-lo
Dize-lhe assim: “Por que não pensas nela?”

Florbela Espanca
In “Trocando olhares” (1916)


Balada

Amei-te muito, e eu creio que me quiseste
Também por um instante nesse dia
Em que tão docemente me disseste
Que amavas ‘ma mulher que o não sabia.

Amei-te muito, muito!Tão risonho
Aquele dia foi, aquela tarde!…
E morreu como morre todo o sonho
Deixando atrás de si só a saudade! …

E na taça do amor, a ambrosia
Da quimera bebi aquele dia
A tragos bons, profundos, a cantar…

O meu sonho morreu… Que desgraçada!
E como o rei de Thule da balada
Deitei também a minha taça ao mar …

Florbela Espanca
In “Trocando olhares” (1916)


Noite Trágica

O pavor e a angústia andam dançando…
Um sino grita endechas de poentes…
Na meia-noite d´hoje, soluçando,
Que presságios sinistros e dolentes!…

Tenho medo da noite!… Padre nosso
Que estais no céu… O que minh´alma teme!
Tenho medo da noite!… Que alvoroço
Anda nesta alma enquanto o sino geme!

Jesus! Jesus, que noite imensa e triste!
A quanta dor a nossa dor resiste
Em noite assim que a própria dor parece…

Ó noite imensa, ó noite do Calvário,
Leva contigo envolto no sudário
Da tua dor a dor que me não ´squece!

Florbela Espanca
In “Trocando olhares” (1916)


Sonhos

Ter um sonho, um sonho lindo,
Noite branda de luar,
Que se sonhasse a sorrir…
Que se sonhasse a chorar…

Ter um sonho, que nos fosse
A vida, a luz, o alento,
Que a sonhar beijasse doce
A nossa boca… um lamento…

Ser pra nós o guia, o norte,
Na vida o único trilho;
E depois ver vir a morte

Despedaçar esses laços!…
…É pior que ter um filho
Que nos morresse nos braços!

Florbela Espanca
In “Trocando olhares” (1916)


Vulcões

Tudo é frio e gelado. O gume dum punhal
Não tem a lividez sinistra da montanha
Quando a noite a inunda dum manto sem igual
De neve branca e fria onde o luar se banha.

No entanto que fogo, que lavas, a montanha
Oculta no seu seio de lividez fatal!
Tudo é quente lá dentro…e que paixão tamanha
A fria neve envolve em seu vestido ideal!

No gelo da indiferença ocultam-se as paixões
Como no gelo frio do cume da montanha
Se oculta a lava quente do seio dos vulcões…

Assim quando eu te falo alegre, friamente,
Sem um tremor de voz, mal sabes tu que estranha
Paixão palpita e ruge em mim doida e fremente!

Florbela Espanca
In “Trocando olhares” (1916)


Errante

Meu coração da cor dos rubros vinhos
Rasga a mortalha do meu peito brando
E vai fugindo, e tonto vai andando
A perder-se nas brumas dos caminhos.

Meu coração o místico profeta,
O paladino audaz da desventura,
Que sonha ser um santo e um poeta,
Vai procurar o Paço da Ventura…

Meu coração não chega lá decerto…
Não conhece o caminho nem o trilho,
Nem há memória desse sítio incerto…

Eu tecerei uns sonhos irreais…
Como essa mãe que viu partir o filho,
Como esse filho que não voltou mais!

Florbela Espanca
In “Trocando olhares” (1916)


Só!

Vejo-me triste, abandonada e só
Bem como um cão sem dono e que o procura,
Mais pobre e desprezada do que Job
A caminhar na via da amargura!

Judeu Errante que a ninguém faz dó!
Minh’alma triste, dolorida e escura,
Minh’alma sem amor é cinza e pó,
Vaga roubada ao Mar da Desventura!

Que tragédia tão funda no meu peito!…
Quanta ilusão morrendo que esvoaça!
Quanto sonho a nascer e já desfeito!

Deus! Como é triste a hora quando morre…
O instante que foge, voa, e passa…
Fiozinho de água triste…a vida corre…

Florbela Espanca
In “Trocando olhares” (1916)


Desalento

Às vezes oiço rir, é ’ma agonia
Queima-me a alma como estranha brasa
Tenho ódio à luz e tenho raiva ao dia
Que me põe n’alma o fogo que m’abrasa!

Tenho sede d’amar a humanidade…
Eu ando embriagada… entontecida…
O roxo de maus lábios é saudade
Duns beijos que me deram n’outra vida!

Ei não gosto do Sol, eu tenho medo
Que me vejam nos olhos o segredo
Que só saber chorar, de ser assim…

Gosto da noite, imensa, triste, preta,
Como esta estranha e doida borboleta
Que eu sinto sempre a voltejar em mim!

Florbela Espanca
In “Trocando olhares” (1916)



Maior Tortura

Na vida, para mim, não há deleite.
Ando a chorar convulsa noite,
E não tenho nem sombra em que me acoite,
E não tenho uma pedra em que me deite!

Ah! Toda eu sou sombras, sou espaços!
Perco-me em mim na dor de ter vivido!
E não tenho a doçura duns abraços
Que me façam sorrir de ter nascido!

Sou como tu um cardo desprezado
A urze que se pisa sob os pés,
Sou como tu um riso desgraçado!

Mas a minha Tortura inda é maior:
Não ser poeta assim como tu és
Para concretizar a minha Dor!

Florbela Espanca
In “Trocando olhares” (1916)


Cegueira Bendita

Ando perdida nestes sonhos verdes
De ter nascido e não saber quem sou,
Ando ceguinha a tatear paredes
E nem ao menos sei quem me cegou!

Não vejo nada, tudo é morto e vago…
E a minha alma cega, ao abandono
Faz-me lembrar o nenúfar dum lago
´Stendendo as asas brancas cor do sonho…

Ter dentro d´alma na luz de todo o mundo
E não ver nada nesse mar sem fundo,
Poetas meus irmãos, que triste sorte!…

E chamam-nos a nós Iluminados!
Pobres cegos sem culpas, sem pecados,
A sofrer pelos outros té à morte!

Florbela Espanca
In “Trocando olhares” (1916)


Noivado Estranho

O luar branco, um riso de Jesus,
Inunda a minha rua toda inteira,
E a Noite é uma flor de laranjeira
A sacudir as pétalas de luz…

A luar é uma lenda de balada
Das que avozinhas contam à lareira,
E a Noite é uma flor de laranjeira
Que jaz na minha rua desfolhada…

O Luar vem cansado, vem de longe,
Vem casar-se co´a Terra, a feiticeira
Que enlouqueceu d´amor o pobre monge…

O luar empalidece de cansado…
E a noite é uma flor de laranjeira
A perfumar o místico noivado!…

Florbela Espanca
In “Trocando olhares” (1916)


A um Livro

No silêncio de cinzas do meu Ser
Agita-se uma sombra de cipreste,
Sombra roubada ao livro que ando a ler,
A esse livro de mágoas que me deste.

Estranho livro aquele que escreveste,
Artista da saudade e do sofrer!
Estranho livro aquele em que puseste
Tudo o que eu sinto, sem poder dizer!

Leio-o, e folheio, assim, toda a minh’alma!
O livro que me deste é meu, e salma
As orações que choro e rio e canto! ...

Poeta igual a mim, ai que me dera
Dizer o que tu dizes! ... Quem soubera
Velar a minha Dor desse teu manto! ...

Florbela Espanca
In “Trocando olhares” (1916)


A oferta do destino
(à Vina)

Um dia, o destino, trôpego velho de cabelos cor da neve,
 deu-me uns sapatos e disse- me:- Aqui tens estes sapatos 
de ferro, calça-os e caminha. . . Caminha sempre, 
sem descanso nem fadiga, vai sempre avante e não te detenhas,
 não pares nunca! . . . A estrada da vida t em trechos de céu
 e paisagens infernais; não t e assuste a escuridão, nem te
 deslumbres com a claridade; nem um minuto sequer te detenhas
 à beira da estrada; deixa florir os malmequeres, deixa cantar
 os rouxinois. Quer seja lisa, quer seja alcantilada a imensa 
estrada, caminha, caminha sempre! Não pares nunca! Um dia, 
os sapatos hão-de romper-se; deter-te-ás então. 
É que terás encontrado, enfim, os olhos perturbadores e 
profundos, a boca embriagante e fatal que há-de prender-te
 para todo o sempre!
Isto disse-me um dia o destino, trôpego velho de cabelos 
cor da neve.

Calcei os sapatos e caminhei, O luar era profundo; às vezes,
 cantavam nas matas os rouxinois. . . Outras vezes, ao sol 
ardente do meio-dia desabrochavam as rosas, vermelhas como
 beijos de sangue; as borboletas traziam nas asas, finas
 como farrapos de seda, os perfumes delirantes de milhares 
de corolas! Outras vezes ainda, nem uma estrela no céu, 
nem um perfume na terra, e eu ouvia a meus pés a voz de 
algum imenso abismo. Passei pelo reino do sonho, pelo país 
da esperança e do amor que, ao longe, banhado pelo sol,
 dá a impressão duma imensa esmeralda, e vi também as 
terras tristes da saudade, onde o luar chora noite e dia!

Não me detive nem um só instante! O coração ficou-me a pedaços
 dispersos pelos caminhos que percorri, mas eu caminhei sempre,
 sem fraquejar um só momento! . . . Há muito tempo que ando,
 tenho quase cem anos já, os meus cabelos tomam-se da cor do
 linho, e o meu frágil corpo inclina-se suavemente para a 
terra, como uma fraca haste sacudida pela nortada. Começo a
 sentir-me cansada, os meus passos vão sendo vagarosos na
 estrada imensa da vida!
E os sapatos inda se não romperam!

Onde estar eis vós, ó olhos perturbadores e profundos,
 ó boca embriagante e fatal que há-de prender- me para 
todo o sempre?! . . .


Florbela Espanca
In “Trocando olhares” (1916)