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sábado, 5 de outubro de 2013

Castelã da Tristeza




Altiva e couraçada de desdém,
Vivo sozinha em meu castelo: a Dor!
Passa por ele a luz de todo o amor ...
E nunca em meu castelo entrou alguém!

Castelã da Tristeza, vês? ... A quem? ...
– E o meu olhar é interrogador –
Perscruto, ao longe, as sombras do sol-pôr ...
Chora o silêncio ... nada ... ninguém vem ...

Castelã da Tristeza, porque choras
Lendo, toda de branco, um livro de horas,
À sombra rendilhada dos vitrais? ...

À noite, debruçada, pelas ameias,
Porque rezas baixinho? ... Porque anseias? ...
Que sonho afagam tuas mãos reais? ...


Florbela Espanca
in "Livro de Mágoas"

PARA QUÊ?



Ao velho amigo João 

Para que ser o musgo do rochedo 
Ou urze atormentada da montanha? 
Se a arranca a ansiedade e o medo 
E este enleio e esta angústia estranha

E todo este feitiço e este enredo 
Do nosso próprio peito? E é tamanha 
E tão profunda a gente que o segredo
Da vida como um grande mar nos banha?

Pra que ser asa quando a gente voa 
De que serve ser cântico se entoa 
Toda a canção de amor do Universo?

Para que ser altura e ansiedade, 
Se se pode gritar uma Verdade 
Ao mundo vão nas sílabas dum verso?

Florbela Espanca
In ‘Reliquiae’


EM VÃO


 
Passo triste na vida e triste sou 
Um pobre a quem jamais quiseram bem!
Um caminhante exausto que passou, 
Que não diz onde vai nem donde vem.
 
Ah! Sem piedade, a rir, tanto desdém 
A flor da minha boca desdenhou! 
Solitário convento onde ninguém 
A silenciosa cela procurou!
 
E eu quero bem a tudo, a toda a gente!... 
Ando a amar assim, perdidamente,
A acalentar o mundo nos meus braços!
 
E tem passado, em vão, a mocidade 
Sem que no meu caminho uma saudade 
Abra em flores a sombra dos meus passos!

 
Florbela Espanca
In ‘Reliquiae’

O MEU IMPOSSÍVEL



Minh’alma ardente é uma fogueira acesa,
É um brasido enorme a crepitar! 
Ânsia de procurar sem encontrar 
A chama onde queimar uma incerteza!

Tudo é vago e incompleto! E o que mais pesa 
É nada ser perfeito! É deslumbrar 
A noite tormentosa até cegar
E tudo ser em vão! Deus, que tristeza!...

Aos meus irmãos na dor já disse tudo 
E não me compreenderam!... Vão e mudo 
Foi tudo o que entendi e o que pressinto...

Mas se eu pudesse, a mágoa que em mim chora. 
Contar, não a chorava como agora, 
Irmãos, não a sentia como a sinto!...

Florbela Espanca
In ‘Reliquiae’


ROSEIRA BRAVA


 
Há nos teus olhos de oiro um tal fulgor 
E no teu riso tanta claridade, 
Que o lembrar-me de ti é ter saudade
Duma roseira brava toda em flor.
 
Tuas mãos foram feitas para a dor,
Para os gestos de doçura e piedade;
E os teus beijos de sonho e de ansiedade 
São como a alma a arder do próprio amor! 
 
Nasci envolta em trajes de mendiga; 
E, ao dares-me o teu amor de maravilha,
Deste-me o manto de oiro de rainha!
 
Tua irmã... teu amor... e tua amiga... 
E também - toda em flor - a tua filha, 
Minha roseira brava que é só minha!...
 
Florbela Espanca
In ‘Reliquiae’


terça-feira, 1 de outubro de 2013

Alvorecer



A noite empalidece. Alvorecer…
Ouve-se mais o gargalhar da fonte…
Sobre a cidade muda, o horizonte
É uma orquídea estranha a florescer.
 
Há andorinhas prontas a dizer
A missa d’alva, mal o sol desponte.
Gritos de galos soam monte em monte
Numa intensa alegria de viver.
 
Passos ao longe… um vulto que se esvai…
Em cada sombra Colombina trai…
Anda o silêncio em volta a q’rer falar…
 
E o luar que desmaia, macerado,
Lembra, pálido, tonto, esfarrapado,
Um Pierrot, todo branco, a soluçar…

 
Florbela Espanca
In ‘Charneca Em Flor’ 1931


OUTONAL


  
Caem as folhas mortas sobre o lago;
Na penumbra outonal, não sei quem tece
As rendas do silêncio... Olha, anoitece!
- Brumas longínquas do País do Vago...
 
Veludos a ondear... Mistério mago...
Encantamento... A hora que não esquece,
A luz que a pouco e pouco desfalece,
Que lança em mim a bênção dum afago...
 
Outono dos crepúsculos doirados, 
De púrpuras, damascos e brocados!
- Vestes a terra inteira de esplendor!
 
Outono das tardinhas silenciosas, 
Das magníficas noites voluptuosas 
Em que eu soluço a delirar de amor...
 
 
Florbela Espanca
In ‘Charneca Em Flor’ 1931